Sucesso ou desastre? Filme na Netflix retrata bastidores de uma das canções mais famosas da indústria fonográfica  na história Divulgação / Netflix

Sucesso ou desastre? Filme na Netflix retrata bastidores de uma das canções mais famosas da indústria fonográfica na história

Há gente morrendo. O que parece tristemente óbvio, ainda hoje, era cantado num verso de “We Are the World” (1985), uma ação entre amigos (ou nem tanto) que vendeu um milhão de cópias em todo o mundo no fim de semana do lançamento e segue vertendo fundos para o combate da inanição severa no continente africano — oitenta milhões de dólares até hoje.

O que “A Noite que Mudou o Pop”, título megalomaníaco e algo farsesco do documentário do vietnamita Bao Nguyen, tem de verdadeira e involuntariamente revelador é o que levou os maiores nomes da indústria fonográfica internacional a embarcar numa empreitada quase suicida em prol dos desvalidos de um lugar pelo qual a maior parte jamais havia se interessado até o momento, o que abre um leque gigantesco para saudáveis discussões (de que Nguyen não trata) acerca de marketing social, autopromoção, publicidade cruzada entre gravadoras, tudo embalado pelo papel brilhante da solidariedade e da filantropia.

Lionel Richie, figurinha carimbada no mundo do espetáculo ao longo das décadas de 1970 e 1980 e mestre no assunto, materializa o cinismo de certa classe artística — dou de barato que muita gente tenha caído na esparrela de boa-fé, malgrado também quisesse seu pedaço do bolo — ao conduzir o filme, emprestando a voz a constrangedoras inconfidências sobre si e os colegas com quem gravara o single mais famoso da história da música.

Richie parece querer reoxigenar a carreira, da mesma forma que fizera com a ajuda de Quincy Jones ao se distanciar do Commodores em 1982 e se tornar uma das vozes mais ouvidas do século. Aqui, Richie presta-se ao encargo de porta-voz do padrinho, o responsável por juntar, em 25 de janeiro de 1985, as personalidades mais talentosas do cenário musical americano num estúdio de Los Angeles com o propósito de conferir o devido acabamento estético ao desejo à primeira vista inatacável e nobilíssimo de matar a fome de cidadãos africanos que começavam a padecer também com a então nova epidemia de aids, que se alastraria pelo mundo sem trégua e mostrar-se-ia particularmente cruel naquele recanto esquecido do planeta.

O empresário Ken Kragen (1936-2021) colocou a mão na massa da burocracia, conversou com os donos das companhias pelas quais os cantores gravavam seus discos — e a quem ficavam amarrados em contratos draconianos, hoje se sabe, cujos nefastos pormenores não entendiam bem — afinou as agendas o quão pode e no dia marcado o foguete começou a subir. Mais ou menos.

O sal de “A Noite que Mudou o Pop”, que está na Netflix, é mesmo o foco nas estrelas que perfazem a imensa constelação de egos e temperamentos diversos que integram o coro de “We Are the World”, o que, por evidente, acende a fogueira das vaidades que arde mais e mais alto. Sente-se a ausência de Madonna, substituída por Cyndi Lauper não se sabe em que circunstâncias, da mesma forma que acontece com Prince (1958-2016) e Stevie Wonder.

O que Dan Aykroyd estava fazendo lá? Enquanto o público especula sobre uma razão minimamente plausível para essas perguntas, Michael Jackson (1958-2009), a alma inconteste da campanha, dava seus memoráveis pitis, acirrando ainda mais os ânimos e os bocejos de Tina Turner (1939-2023) e Ray Charles (1930-2004). A nostalgia de uma era tão pródiga em arte genuína e vigorosa passa para quem assiste, o que doura a memória agora escancarada por trás daquela efeméride valiosa como um diamante de plástico.


Filme: A Noite que Mudou o Pop
Direção: Bao Nguyen
Ano: 2024
Gêneros: Documentário/Musical
Nota: 7/10