Com Julia Roberts e Cameron Diaz, a última comédia romântica inteligente do cinema está na Netflix Divulgação / TriStar Pictures

Com Julia Roberts e Cameron Diaz, a última comédia romântica inteligente do cinema está na Netflix

“O Casamento do Meu Melhor Amigo” é decerto uma das derradeiras comédias românticas inteligentes do cinema. Percebe-se no filme de P.J. Hogan do cuidado com o texto, uma pérola de Ronald Bass cheia de referências à Era de Ouro de Hollywood, a sadia indiferença quanto a ferir suscetibilidades, sem que ninguém que possa ousar dizer-se ofendido com o que quer que seja. À história de amor de uma mulher e um homem — ou antes, de uma garota por um rapaz —, Hogan e Bass acrescentam considerações suavemente filosóficas acerca da efemeridade da vida, da urgência de se fazer as escolhas certas, do tempo inclemente aos nossos rogos, tanto pior se sabemos que um dia tudo acaba e, mesmo assim, continuamos dispondo dos anos como se eles nos pertencessem, para sempre. Os aspectos verdadeiramente austeros do enredo são suavizados por uma embalagem rosicler, como a de um bombom fino, mas que reserva sabores nem tão atraentes, ao menos para bocas ineptas ao agridoce da realidade.

Julianne Potter e Michael O’Neal foram muito mais que melhores amigos, mas ela, desde sempre obstinada por sua carreira, preferiu fazer-lhe uma oferta tresloucada, dessas que todos sabemos que não iremos cumprir. Sua atenção pelo futuro profissional foi recompensada, ela tornou-se uma das críticas gastronômicas mais sérias de Nova York, temida pelos 19.400 restauranteurs da cidade, mas nunca esqueceu o pacto que fizera com Mike: aos 28 anos, em ainda estando os dois solteiros, deveriam se casar — ignorando a obviedade de estarem separados há quase uma década e não saberem mais nada um sobre o outro.

Os dois beiram os 28, e como só acontece mesmo nas comédias românticas (e ainda bem), ela recebe um telefonema de Mike, mas não para ouvir a palavra mágica. Ele liga para explicar que se casa em três dias,com uma estudante da Universidade de Chicago, dez anos mais nova, filha do dono do White Sox, o time de beisebol de Chicago, e de uma rede de emissoras a cabo. Quase se sente a atmosfera em torno de Jules tornar-se mais impenetrável que um rosbife de contrafilé esquecido no forno. 

Se Julia Roberts e Dermot Mulroney, nessa ordem, alternam-se no primeiro ato, como se numa fina disputa pelos olhares da audiência, Cameron Díaz, a verdadeira noiva aqui, não precisa de mais que cinco ou dez minutos para cativar de vez o público. Kimberly Wallace, a tal filha de um dos mandachuvas de Chicago, passa longe do estereótipo da patricinha caricata, a despeito dos cabelos loiros e dos vestidos de grife — critério bastante questionável, a propósito — e encanta pela pureza, pela inocência, pelo ar genuinamente angelical frente a duas feras, Jules e Mike, nessa ordem.

Hogan aproveita todas as excelentes pontuações de Bass quanto a remover da personagem de Roberts todo o verniz de boa moça que pudesse ter, malgrado sempre bem-aconselhada por George Downes, o amigo bonitão, refinado e gay, de Rupert Everett. Desse momento até pouco antes da conclusão, Jules solta a megera que talvez guardasse em si desde o rompimento com Mike (unilateral, por parte dela, que se diga) e avança com tudo para cima da pobre nubente, meio aparvalhada diante da fúria da serpente que agasalhou em seu próprio seio, e que chamou para ser madrinha, substituindo a ausência involuntária de uma amiga de verdade.

“O Casamento do Meu Melhor Amigo” termina como toda comédia romântica terminaria se o mundo não tivesse se degradado tanto. Hoje, cerca de trinta anos depois, os valores e os papéis andam tão desvairadamente invertidos que sem dúvida Jules e Mike terminariam juntos, sobrando para Kimmy a justa condenação por ter se metido entre os dois. O tal zeitgeist não perdoa, mata.


Filme: O Casamento do Meu Melhor Amigo
Direção: P.J. Hogan
Ano: 1997
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 9/10