Melhor do que John Wick, um dos melhores filmes da década acaba de chegar na Netflix Divulgação / Eighty Two Films

Melhor do que John Wick, um dos melhores filmes da década acaba de chegar na Netflix

Homens comuns enfrentam situações que demandam-lhes uma dose generosa de alheamento. Por estarem sempre se cercando de todos os cuidados para que nada fuja ao esperado, no momento em que se veem diante de uma grande reviravolta do destino, ainda que tudo possa tornar ao ponto inicial não muito tempo depois, nunca se perdem de si mesmos e acabam optando pela cautela, o que, em dadas circunstâncias, acaba sendo uma maldição. “Anônimo” destrói as certezas de um sujeito exemplar num único golpe, esticando um pouco a corda da violência, mas sem renunciar ao método.

O ótimo filme de Ilya Naishuller sustenta a instabilidade de seu protagonista valendo-se de algumas cenas em que ele mostra um de seus lados, em nada parecido com o que veio a ser. Uma sensatez cartesiana justo na hora em que deveria chamar seus monstros serve-lhe de rito de passagem para a vida de que não mais se orgulha, solução inatacável para o grave conflito a que tem de dar uma resposta. Muitoda graça de “Anônimo” está na performance quase sem defeitos de Bob Odenkirk, um comediante que o roteiro de Derek Kolstad prova ser capaz de ir muito além da piada e do riso. Num papel feito de nuanças perigosamente sutis entre o humor e a tragédia, Odenkirk soa como Liam Neeson na pele de seus cativantes anti-heróis, lutando contra a própria natureza para continuar vivo, mas com a discrição que faz toda a diferença. Se o astro da “Busca Implacável” e de “A Chamada” (2023), o trabalho mais recente, onde, dirigido por Nimród Antal, faz tudo quanto já nos acostumamos a vê-lo fazendo com a graça contumaz se define pela explosão, o mocinho às avessas de Odenkirk é frio, malgrado saiba direitinho como queimar seus fantasmas.

Hutch Mansell faz tudo igual sempre, e gosta. Depois de situar o espectador na rotina tediosa de Hutch, que todo santo dia senta-se à mesa do café com a mulher, Becca, e os dois filhos, Brady e Sammy, de Gage Munroe e Paisley Cadorath, ele vai para o trabalho usando sempre suéteres escuros, apresenta o cartão de trânsito, observa o movimento da cidade tranquila e corre para alcançar o caminhão do lixo, que nunca o espera. Naishuller dá sinais de que o casamento vai mal, e Connie Nielsen tem garantido seu espaço para amadurecer Becca e explicitar sua amargura, mas prefere concentrar-se na ação que confere sentido ao longa, ainda no primeiro ato. Um casal de assaltantes latinos invade a casa da família exigindo dinheiro. Ele aponta para uma tigela no centro da mesa da cozinha onde há tudo quanto podem lucrar, uma mancheia de dólares amarfanhados — esconderijo do objeto que vai desencadear a virada da história —, e entrega também seu relógio, cujo valor sentimental supera o que poderiam conseguir numa venda posterior. A iluminação baixa confunde o público, insinuando que algum evento paralelo vai acontecer. A impressão se confirma quando Brady ataca o homem, ao passo que Hutch saca um bastão de golfe e se prepara para acertar a mulher. Mas, como se ouvisse uma voz que lhe calasse fundo, estanca, e os ladrões saem de mãos vazias.

Um mal-estar aflige os Mansell por alguns dias, até Hutch ser forçado a tomar uma atitude ao perceber entre as notas amassadas poderia estar uma pulseira de Sammy, que sumiu. Esse é o gatilho de que o diretor se socorre para levar esse homem, um pai amoroso e marido devotado, apesar de preterido, por um vaivém de dilemas morais, todos resolvidos com o exímio talento para lutas adquirido nos tempos de agente do FBI. Numa dessas, deixa entre a vida e a morte o filho de um mafioso russo — um longo e fadigoso enxerto no meio da história —, mas que Odenkirk tira de letra. Até ir voltando a sua vidinha de antes.


Filme: Anônimo 
Direção: Ilya Naishuller
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 9/10