Belíssimo e poético, filme da Netflix vai tocar todos os cantos da sua alma Divulgação / Netflix

Belíssimo e poético, filme da Netflix vai tocar todos os cantos da sua alma

Alguém trauteia uma canção na abertura de “Jon Batiste: American Symphony”, e então fica cada vez mais claro entender do que se trata o comovente documentário de Matthew Heineman, um cineasta jovem que tem se destacado graças à habilidade e mesmo ao gosto por imiscuir-se em temas controversos, incômodos, mas necessários — como faz em “Cartel Land” (2015) e “Uma Guerra Pessoal” (2018) —, e por sempre acabar os transformando numa experiência de profunda conexão de quem assiste consigo mesmo, com o mundo a sua volta, com aspectos do existir com que ainda nem supõe manter uma relação bem próxima, por mais resguardado que se sinta. Num registro franco, objetivo, mas também lírico e, o principal, brando, Heineman guia o público pela carreira e pela intimidade de um homem sensível; de um artista especialmente talentoso; de um marido devotado, arcando sozinho com a agonia da mulher lutando contra uma enfermidade inclemente. Até que lhe vem a inspiração última de um trabalho que define sua vida. 

Jon Batiste toca uma gaita eletrônica à beira rio, talvez conectando-se com o espírito de tempos idos, de gente já sem vínculos com este plano, absorvendo impressões muito delicadas do universo e mandando as suas em resposta, processo que entende como um mecanismo de sobrevivência. Desde criança, Batiste se empenha em criar melodias, e sua mente agitada se opõe ao semblante melancólico. Ele dedilha o piano, sem emitir som, fecha os olhos e meneia a cabeça, tentando compor alguma coisa, enquanto o diretor-roteirista ilustra a tela com imagens de seu biografado segurando cinco estatuetas do Grammy, gancho perfeito para que Heineman reverbere elucubrações do músico sobre o papel de sua arte, fundamental para que se conheça não o que soa bem, mas o que transforma.

Vai surgindo na história de Batiste uma personagem discreta, mas de vital importância em sua trajetória. Suleika Jaouad, sua musa inspiradora, tem a cabeça envolta num turbante, os olhos fundos, a pele um tanto opaca, mas não se rende. Toma uma pílula atrás da outra, e diz sentir-se bem, pegando no sono minutos depois. Ele também adormece, mais por um esgotamento nervoso que por cansaço físico, pensando no que deseja com a sinfonia à que o título faz alusão, um trabalho completo, dispondo de alegro, andante, scherzo e rondó, que deve amalgamar a música erudita e diversos gêneros musicais típicos da América, a exemplo do jazz e do folk.

O filme torna-se particularmente saboroso quando Heineman entende a urgência de se explorar o drama que instala em seu cotidiano com a leucemia de Jaouad, numa recidiva feroz. Ela mesma narra sua tragédia em “Entre Dois Reinos – Uma Cura e um Recomeço” (2021), best-seller em tom de autoajuda sobre as idas e vindas do quimioterapia, processo a que é obrigada a se submeter de tempos em tempos até o fim da vida. Ao cabo dessa manobra arriscada, o enredo ganha dimensão tanto mais humana, até voltar de novo para a saga de Batiste e sua composição, a ser exposta no Carnegie Hall. Pelo ensaio, o resultado é decerto sui generis, longe da unanimidade, mas ninguém pode afirmar que se esteja diante de um dos músicos mais sofisticados de sua geração, alguém que sabe muito bem que o que tem a oferecer é raro. 

A subida ao palco da sala de espetáculos de Midtown Manhattan, a mais célebre dos Estados Unidos (e quiçá do mundo), é realmente memorável, inclusive por um detalhe que poderia ser, sem dúvida, funesto: uma repentina queda de energia no tablado. Isso seria um tormento para qualquer performer, quiçá o atalho para um possível encerramento precoce da carreira, mas Batiste não acusa o golpe. Numa longa sequência, o diretor corta para o lindo solo de piano de um maestro como que tomado por um espírito, o espírito da vitória, do determinismo sobre o mérito, da vulgaridade sobre o requinte, nascendo outra vez, como a mulher com quem escolheu partilhar a saúde e a doença. Vencendo a diáspora musical com uma demonstração prática de que a arte não é a cura; é a própria vida.


Filme: Jon Batiste: American Symphony
Direção: Matthew Heineman
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Biografia/Musical
Nota: 9/10