Anti-herói de Bill Pullman vai te manter hipnotizado em thriller fascinante de espionagem na Netflix Divulgação / Next Film

Anti-herói de Bill Pullman vai te manter hipnotizado em thriller fascinante de espionagem na Netflix

A Guerra Fria (1947-1991) continua rendendo bons filmes. As hostilidades entre os Estados Unidos e a então União Soviética, que professava o socialismo como o pórtico para a utopia de uma humanidade com mais justiça social, são, quase sempre, abordadas sob aspectos que fundem num mesmo todo reflexões sobre a História e prognósticos acerca dos tantos caminhos sinuosos pelos quais o homem pode enveredar quando cego por ideologias que esboroam-se à mais ligeira apreciação da realidade, aliada, claro, à sanha de dominar, esse um vício inerente a sua natureza de que não faz o menor esforço para ver-se livre. O polonês Łukasz Kośmicki escancara nossa urgência por sonho mediante o anti-herói que manifesta um talento especial, mas a reboque de seus demônios em “Partida Fria”, metáfora sobre as transformações a que governos de todo o planeta tiveram de se sujeitar, acossados por cidadãos mais e mais impacientes com deuses de barro.

É difícil cravar com a justeza necessária se os próprios soviéticos criam na ilusão de um mundo verdadeiramente socialista, como o arquitetaram Marx e Engels com generosa mancheia de lirismo, começando pelos gospódines daquela terra prometida, que desfrutavam de todos os apanágios do capitalismo enquanto o povo atravessava dias de incerteza, desemprego, miséria, fome. O socialismo não resistiu ao choque de realidade do mundo pós-moderno, bem como a União Soviética também viu-se compelida a recuar de pretensões totalitárias para além de seus domínios e se render à economia liberal, o que não significou a inserção do povo no mercado consumidor, mas deu a chance dos oligarcas de turno ficarem ainda mais prósperos, embolsando o lucro jamais publicizado das grandes estatais, cuja corrupção, endêmica, definia os grandes negócios. Essas humanas misérias, tão comezinhas quanto lancinantes, anulam uma vez mais a sentença de Brecht que lamenta que um país necessite de heróis. Não só países clamam por salvadores: o gênero humano os espera, ansiando que personifiquem os ideais de que o homem será dependente até o fim dos tempos.

Em outubro de 1962, ano em que Kośmicki e Marcel Sawicki ambientam o roteiro, o mundo vivia o auge das tensões entre Estados Unidos e União Soviética e a consequente escalada das tensões rumo a um conflito nuclear sem precedentes na história. Um Bill Pullman completamente entregue ao personagem, serve de mestre de cerimônias à trama central, que esmiúça a atividade de uma delegação de espiões norte-americanos infiltrados num campeonato de xadrez na Polônia.

No papel de Joshua Mansky, Pullman dá ao enredo a natureza de um bom suspense, escondendo ele próprio segredos de um temperamento perigosamente vulnerável. Esse gênio da matemática e ex-professor de Princeton sofre com um alcoolismo renitente, potencializado pelas crises de ansiedade que evidenciam sua insegurança emocional. Seu quadro de dependência começa a se manifestar com ainda mais força ao saber que terá de substituir no torneio o professor Konigsberg, vítima de um derrame em circunstâncias misteriosas há poucos dias. Mansky suspeita que a competição é um mero jogo de cartas marcadas, em que os russos, representados por Alexander Gavrylov, de Jewgeni Wladimirowitsch Sidichin, saem com vantagem, até que os Estados Unidos sejam irremediavelmente humilhados diante do mundo todo. Mesmo assim, é obrigado a se sacrificar, porque qualquer sombra de desistência no horizonte seria muito mais nociva à imagem do país — e, se possível, descobrir uma maneira de contornar a ofensiva do inimigo e se sagrar o grande vitorioso.

Enquanto vai abrindo a massa para incluir o ingrediente principal, a esperável instalação de ogivas nucleares soviéticas em em Cuba, Kośmicki deslinda os episódios de instabilidade de Mansky, pouco a pouco mais fora de si. Entremeadas às cenas que registram o campeonato e seus bastidores, o público se depara com sequências em que Mansky surge numa cela de vidro, a alguns centímetros do chão, para afastar o risco de fuga, interpelado pela agente Stone, vivida por Lotte Verbeek, e seu colega, White, de James Bloor. Com a analepse, o diretor enfatiza o justificado medo do personagem de Pullman quanto a concorrer com Gavrylov, que por sua vez é observado com lupa pelo general Krutov, o típico vilão do excelente Alexei Walerjewitsch Serebrjakow. O xadrez se presta como alegoria óbvia da disputa das duas nações mais poderosas da Terra pela hegemonia político-militar global, num vaivém de drama e suspense, a dada altura mitigado pela comicidade de Robert Wabich como o polonês beberrão e cínico que se locupleta com as prebendas do regime, mas empenha-lhe um franco desprezo.

A referência imediata logo nos primeiros minutos é a “O Dono do Jogo” (2014), de Edward Zwick, mas o filme de Kośmicki tem qualidades próprias, a começar pelo jeito desabotoado de lidar com assunto tão grave. Diferentemente do protagonista do filme de Zwick, Mansky não se leva a sério e tem um único propósito — e não é o de vencer a batalha cerebral contra Gavrylov. À fotografia de Pawel Edelman, primorosa e acertada ao destacar o sépia de cinzas e marrons esmaecidos a fim de evocar um passado melancólico, são acrescidos diálogos em polonês e russo, cuidado que traz facticidade à trama.

A Guerra Fria se estendeu para além de 8 de dezembro de 1987, quando o presidente americano Ronald Reagan (1911-2004) e o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev, assinaram o INF, tratado que bania intenções de ataque nuclear de parte a parte, e só foi encerrada oficialmente em 26 de dezembro de 1991. Em 4 de março de 2019, alegando violações do acordo pelos Estados Unidos, o presidente russo Vladimir Putin, sustou a validade do documento. Cinco meses depois, em 2 de agosto, o presidente Donald Trump tomou a mesma atitude, deixando no ar a chance de novos enfrentamentos entre os dois países, agravada pela invasão da Ucrânia por tropas do Exército russo em 24 de fevereiro de 2022.


Filme: Partida Fria
Direção: Łukasz Kośmicki
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Espionagem
Nota: 9/10