Pegue seu chocolate quente e caia no sofá para assistir ao romance de Natal que acaba de estrear na Netflix Divulgação / TriStar Pictures

Pegue seu chocolate quente e caia no sofá para assistir ao romance de Natal que acaba de estrear na Netflix

O Natal nunca foi unanimidade, e o cinema oferece provas à mancheia para tal constatação. Parece que grandes tragédias, íntimas e de dimensões planetárias, esperam aquele tempinho mágico definido pela última semana do ano para, afinal, romper a casca do inaudito e vir à tona, deixando um rastro de corações partidos, de lágrimas, às vezes de sangue. De Billy Wilder (1906-2002), com “Se Meu Apartamento Falasse” (1960), cult mais e mais atemporal, a Chris Columbus, o mago por trás do fenômeno “Esqueceram de Mim” (1990), passando por “O Grinch” (2000), dirigido por Ron Howard, e “O Estranho Mundo de Jack” (1993), de Tim Burton e Henry Selick, celebrações natalinas sempre renderam grandes histórias, e com “Happiest Season”, guardadas as devidas proporções, o fenômeno se repete.

Clea DuVall recicla chavões um tanto enferrujados de que a indústria já lançou mão em reiteradas ocasiões para, com muita personalidade, descortinar seu ponto de vista a respeito de problemas que atravessam o ano, mudam-se com desejos, sonhos, ilusões para o ano seguinte, e as arcaicíssimas mazelas da alma humana perpetuam-se, como se um dado irreversível e perverso que teima em cair da árvore da vida. Assumidamente homossexual, a diretora aborda questões espinhosas, felizmente cada vez mais discutidas mesmo em lares conservadores, tendo a celebração de um novo tempo para a doutrina cristã como pano de fundo, claro que por razões mercadológicas, mas não só. Se o espírito de renovamento, de benevolência, de autotransformação paira sobre a cabeça de toda mulher e todo homem de boa vontade por cerca de quatro semanas, nada mais justo que se abandonem velhos preconceitos, deitem-se no chão os fuzis da intolerância e se tente a sério fazer um novo tempo.

“Happiest Season” abre a programação de enredos natalinos das plataformas de streaming ensaiando uma resposta à indagação de Machado de Assis (1839-1908), ainda que com um viés decididamente positivo. O Natal muda, mudamos nós, o que era tabu instala-se nas rodas de conversa e o que era mistério se desnuda. Os Caldwell, a família venturosa em torno de quem o roteiro de DuVall e Mary Holland gira, são uma farsa, conforme se vai saber no terceiro ato. Enquanto isso, Harper e Abby aproveitam um passeio guiado pela rua das Luzes, em Pittsburgh — Harper mais do que Abby, na verdade —, admirando a decoração para as festas de fim de ano, costume inaugurado por um certo Herbert Flackshaw.

Nesse primeiro contato com as personagens, o espectador já pode ter uma ideia do que vai se dar entre as duas, que vêm de universos muito distintos. Harper, a típica patricinha interpretada por Mackenzie Davis, não tem a menor intenção de abdicar da boa vida que leva com os pais, Ted e Tipper, dois bons representantes do que se poderia chamar sem qualquer animosidade de elite beócia. Ted cruza sem maiores percalços a transição de conselheiro a alcaide numa campanha fartamente irrigada com dinheiro de empresários locais, a exemplo de Harry Levin, papel de Ana Gasteyer. Tipper, por seu turno, não tem nenhuma grande preocupação na vida a não ser ajudar o marido na empreitada e chegar a primeira-dama da cidade, claro.

“Happiest Season” tem o andamento perfeito a fim de que todos os núcleos recebam a devida atenção, e Mary Steenburgen e Victor Garber, nessa ordem, dão um show. É por todo esse fausto que Harper deixa-se cegar, a ponto de não perceber (ou o fingir com invejável competência) a aflição da namorada. Abby, a verdadeira mocinha de Kristen Stewart, sofre calada o desprezo de Harper, e a escalada de humilhações para com a moça é um dos trunfos do texto de DuVall e Holland, que sabem o que tirar das atrizes e, mais importante, quando. Quando junta Harper, Abby, Tipper e Ted, fica ainda mais claro que o namoro não engrena muito menos por causa da estreita visão de mundo dos pais abilolados da riquinha do que por sua própria covardia.

Outras questões incômodas vêm à baila em “Happiest Season”, sempre de modo a se castigar os hábitos. O casamento inter-racial de Sloane, a irmã mais velha de Harper, de Alison Brie, e Eric, de Burl Moseley, também fracassa, mas não por ela ser branca e ele, afro-americano. DuVall tem a coragem de, burlando a vigilância implacável do politicamente correto, tratar pessoas sem limitações categóricas, o que deveria ser a regra, mas por assustador que pareça, é o desvio. A ação corre por mais um ano, e na entrada do Guthrie, o teatro onde vão assistir a “A Felicidade Não Se Compra” (1946), de Frank Capra (1897-1991) — o clássico dos clássicos dos contos de Natal de Hollywood —, Harper e Abby parecem realmente aptas a viver juntas, atestando que a vida é, sim, maravilhosa.


Filme: Happiest Season
Direção: Clea Duvall
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10