Vale cada segundo: um dos mais belos filmes da história da Netflix (mas você possivelmente não assistiu) Rodrigo Jardon / Netflix

Vale cada segundo: um dos mais belos filmes da história da Netflix (mas você possivelmente não assistiu)

Ninguém está livre de tornar-se um escravo das próprias lembranças, principalmente nos momentos em que tudo quanto resta é só a felicidade que já não existe mais. Ao longo de toda a vida, cerca-nos o perigo de que passemos ao melancólico estado de arqueólogos de nossa própria vida, cascavilhando nossas miudezas em busca de qualquer coisa que nos faça supor que uma época boa, mas já sepulta há muito, pode reviver por si só ou.

Alejandro González Iñárritu parece continuar firme em seu propósito de não mais tolerar as delicadezas cínicas que sustentam o mundo. Em “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, Iñárritu personifica muitas das neuroses não apenas do gênero humano, mas das Américas, da história do continente americano, da glória e do desajuste de ser artista numa era de violências perpetradas das mais diversas maneiras, das mensagens que condenam, das palavras que matam.

El Negro, como é conhecido em Hollywood, já conta cinco Oscars no currículo e este seu trabalho mais recente — pleno de toda a originalidade e de todos os maneirismos pelos quais a Academia costuma se enamorar — parece que vai juntar-se aos outros homenzinhos dourados do mexicano. Com seu 13º filme, o diretor inclina-se a escancarar um tanto mais sua perturbação frente à ignorância maciça que rege nosso tempo, espraiada pelos campos mais insólitos e mais urgentes.

Combinando o lirismo agridoce e niilista de “Biutiful” (2010) às iluminações sobre a penúria da arte nas sociedades pós-modernas, como o exposto em “Birdman ou (A Inesperada Virtude Da Ignorância)” (2014), e sem deixar de lado as experimentações que bem o caracterizam, caso de “O Regresso” (2015), Iñárritu não tem pudor nenhum de escarafunchar as chagas nunca cicatrizadas dos Estados Unidos. Há em boa parte dos 160 minutos de projeção metáforas sobre o que é ser chicano para além dos domínios do Rio Grande, mas este é um relato pessoal também. O diretor aniquila qualquer sonho, renitente e detestável em igual proporção, quanto à chance de se embarcar num trem mágico para todas as gares das recordações e lá se estabelecer pelo período que se desejar, voltando depois como se nada tivesse havido.

Silverio Gacho, o bardo do título, é um alter ego muito bem pesado de El Negro — que incorporou o apelido até como um meio de autoafirmar-se —, e embora juntem-se ao roteiro, de Iñárritu e Nicolás Giacobone uma legião de personagens, Silverio, na atuação irretocável de Daniel Giménez Cacho, resume tudo quanto se precisa saber a respeito de El Negro, da vida, de seu cinema, das penas, desumanas ou não, mas que só a ele cabe expiar, hoje, amanhã, em um ano, em um século. Do mundo e de sua feiura, indizível e ultrajante, sem sentido e, ainda assim, pedagógica. Que estanca e renova e dá coragem, no movimento dialético que justifica o próprio existir de cada um, poeta ou não.


Filme: Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades
Direção: Alejandro González Iñárritu
Ano: 2022
Gêneros: Drama
Nota: 9/10