Ganhador de 4 Oscars, filme inesquecível com Anthony Hopkins, está na Netflix Divulgação / DreamWorks

Ganhador de 4 Oscars, filme inesquecível com Anthony Hopkins, está na Netflix

Chaga das mais nefastamente profundas da história da civilização, a escravatura alongou-se pelos anos, em quase todos os rincões do globo, pela ação implacável de homens maus e a leniência pusilânime dos homens bons, e residia aí seu maior capital. Se de quando em quando, alguns fatos históricos tornam-se alvo do escrutínio público de pesquisadores e artistas depois que vêm a lume dúvidas até então relegadas ao silêncio quase eterno do passado, outros permanecem mergulhados em incerteza, deixando-se banhar pela luz do sol da verdade só pelo lado em que a lenda não mais os alcança, tanto pela importância do que escondem como pela dificuldade de enxergá-los com os olhos da nossa pós-modernidade. “Amistad” é o exemplo cabal de filme em que o esforço para dissolver hesitações acerca de uma quadra nebulosa da história dos Estados Unidos, desconhecida inclusive por muitos de seus cidadãos — e mesmo pelo grupo social que esse problema continua a tocar mais intimamente ainda hoje. E quanto mais se toma pé do enredo, mais nítida é a impressão de que os detalhes menos óbvios sempre nos escapam.

Um homem tentando desvencilhar-se de seus grilhões é decerto uma imagem capaz de provocar arrepios em qualquer pessoa minimamente civilizada, mas quando esse homem é negro, novas construções se levantam e conduz ao raciocínio mais ou menos padronizado de que aquilo só pode ter relação com jogos de poder que se foram estabelecendo entre os séculos 16 e 19 e que, por conseguinte, não cessariam assim tão logo. Em “Amistad’, Steven Spielberg replica muitos dos argumentos de que lançara mão quatro anos antes, em “A Lista de Schindler”, mérito não propriamente seu, mas da realidade da condição humana, tão resistente a qualquer perspectiva de evolução. Spielberg vai fazendo com que o espectador apreenda do roteiro de David Franzoni aspectos cada vez mais inescapáveis quanto a se concluir que a escravidão foi, junto com o Holocausto, um dos maiores opróbrios a nos assombrar, um terror que só mesmo o homo sapiens sapiens é capaz de perpetrar contra sua própria espécie. A dada altura do filme, o diretor coloca na boca de seus personagens falas em que explicita seu desejo de ligar um a outro evento, aludindo a Jesus, o messias judeu, poderoso o bastante para curar enfermos impondo-lhes as mãos, mas também por completo vulnerável a perseguição das autoridades de seu tempo. Da mesma forma se deu com Cinque, um símbolo de liderança e prosperidade na sua Serra Leoa natal sujeitado ao degredo compulsório por homens de sua própria gente. Cinque, incorporado num misto de doçura e raiva por Djimon Hounsou — o que lhe valeu uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Ator em Filme de Drama (a indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante foi para Anthony Hopkins, debate reaceso nos últimos dias) —, é embarcado nu e meio morto no navio que dá nome ao longa, atravessa o Atlântico convicto de que sua vida acabou. Antes de servir de testemunha a toda sorte de abusos, padecer de humilhações indescritíveis e ter a alma e a carne marcadas pelo maior dos absurdos que pode cair sobre os ombros de um ser humano, investe contra a tripulação daquela arca para o inferno. Seu ato de desesperada coragem se muda para um dos mais intrincados julgamentos da história dos Estados Unidos, quando “Amistad” apresenta o seu filme dentro do filme.

Até o desfecho, a seiva de “Amistad” é a possível sentença a ser proferida contra Cinque e outros insurgentes, desfiada argutamente por Spielberg. Detalhes como o fato de sete dos nove juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1839 serem do Sul, ou seja, escravagistas e proprietários de escravos, vêm a lume um pouco tarde demais, comprometendo a pronta intelecção da trama central, ainda que o diretor seja hábil o suficiente para dar as devidas explicações a tempo. E se o consegue, grande parte do mérito é, sim, de Hopkins, que encarna o ex-presidente John Quincy Adams (1767-1848), defensor inequívoco da liberdade dos homens, negros ou não, com o peso moral que sua brilhante carreira já legitimava 26 anos atrás.


Filme: Amistad
Direção: Steven Spielberg
Ano: 1997
Gêneros: Drama/Mistério/História
Nota: 9/10