Última chance de assistir, na Netflix, a um dos filmes mais belos da história do cinema Divulgação / Walt Disney Pictures

Última chance de assistir, na Netflix, a um dos filmes mais belos da história do cinema

Em 1940, Walt Disney (1901-1966) começava sua escalada rumo ao topo do show business e da indústria cultural. Produtor de sucesso apenas relativo e alcance popular limitado, Disney colecionava Oscars desde 1932, quando lançou o curta “Flores e Árvores”, mas suas animações só passaram a ocupar posição de destaque no mercado e no inconsciente coletivo no momento em que teve a ideia, revolucionária para a época, de adaptar fábulas e histórias cujo teor criativo verificava-se diretamente proporcional aos anseios do público, transformando lendas escandinavas, orientais, indígenas e africanas em roteiros sofisticados, ilustrados por composições da música erudita famosas desde sempre.

“Pinóquio” e “Fantasia”, ambos de 1940, são exemplos de apropriações culturais que catalisaram essa vontade do cinema quanto a reinventar tudo, estendendo seu apetite também para a literatura. “Ponte para Terabítia”, o filme do realizador húngaro-americano Gábor Csupó, vale-se do argumento do livro homônimo de Katherine Paterson, de 1977, para reavivar na plateia o gosto pelo sonho, a despeito da idade que se tenha ou do cansaço da vida que nos abate a todos sem clemência.

A distribuição de “Ponte para Terabítia” pelos estúdios Disney, juntamente com a Summit Entertainment, da franquia “Crepúsculo”, foi essencial para que o filme se tornasse o fenômeno pop que se comprovou. As imagens que cobrem os créditos iniciais servem como uma espécie de marca registrada das histórias patrocinadas pelo velho Walt e lembram o próprio “Fantasia”. Passados quase setenta anos, Csupó retrata o cotidiano de uma família comum do interior dos Estados Unidos, feliz como todas as outras e infeliz a seu modo. Jesse, o único filho homem de Mary e Jack Aarons, enfrenta atravessa as crises da adolescência galharda e estoicamente, forçando-se a suportar as gracinhas e o desprezo típicos das irmãs mais velhas, Brenda e Ellie, de Devon Wood e Emma Fenton.

O núcleo formado por Wood, Fenton, Robert Patrick e Kate Butler é liderado pelo talento precoce de Josh Hutcherson, e May Belle, a irmã caçula e até então única amiga, vivida pela adorável Bailee Madison, não fica atrás. Jesse assiste às aulas da senhora Myers, a Boca de Monstro, de Jen Wolfe, na escola onde é hostilizado por Gary Fulcher e Scott Hoager, com Elliot Lawless e Cameron Wakefield em boas participações afetivas. Tudo parece fadado ao eterno calvário que se alonga sem perspectiva de virada, até que Leslie Burke, a aluna nova surge para chacoalhar a melancolia desse espírito já tão atormentado.

AnnaSophia Robb encarna à perfeição a aura de irrequietude de Leslie. Os dois se aproximam da maneira mais orgânica, como se tivessem mesmo nascido um para o outro, em que pese a aversão entre os sexos que define essa fase. O componente romântico resta sempre apenas sugerido, bem como as críticas ao discurso religioso que Jesse personifica em dada altura do roteiro de David Paterson, filho de Katherine, e Jeff Stockwell. É precisamente essa natureza iconoclasta de Leslie que os leva a explorar o ambiente selvagem que os rodeia em silêncio, momento em que Csupó começa a preparar a narrativa para a menção à tal Terabítia do título, uma terra encantada de imensas árvores retorcidas e secas onde libélulas são guerreiros alados e o vento é o guardião desse universo paralelo.

Filha de Judy e Bill, o casal de escritores de Judy McIntosh e Latham Gaines, muito do que há em Terabítia só existe para Leslie — e agora também para o mocinho de Hutcherson —, inclusive a corda em que se dependuram para acessar seu mundo de magia. O diretor emprega bem esse recurso visual a fim de explicar como Jesse entende o que acontece no desfecho trágico, parábola iniciada ainda no introito e que se fecha sem deixar arestas, de uma forma muito menos traumática que a usada por Howard Zieff (1927-2009) em “Meu Primeiro Amor” (1991).

Alegoria sobre a superação de dores profundas ainda em tenra idade, Katherine Paterson escreveu “Ponte para Terabítia” no intuito de ajudar o filho, sofrendo pela perda de um amigo de brincadeiras numa infância até então à prova de choques. Gábor Csupó mantém essa coordenada, sem lições de moral, o que faz com que o filme conserve seu frescor e sua atualidade dezesseis anos depois. Na morte as pessoas apenas mudam de terno e se encantam. No Céu ou em Terabítia.


Filme: Ponte para Terabítia
Direção: Gábor Csupó
Ano: 2007
Gêneros: Drama/Fantasia
Nota: 9/10