Clássico do cinema volta à Netflix e vai te deixar sem fôlego e sem piscar 180 minutos Divulgação / UIP

Clássico do cinema volta à Netflix e vai te deixar sem fôlego e sem piscar 180 minutos

Há algumas características que fazem de um filme um clássico que atravessa gerações e segue atual, a despeito do sempre bem-vindo progresso econômico, de revoluções tecnológicas ambivalentes e, claro, do próprio homem, a fera que devora seus irmãos. A versão de Peter Jackson, um realizador talentoso (e megalômano), para a história sobre o gorila pantagruélico que ataca a civilização opera nessas três faixas, com uma estridência até militante em muitas passagens. Jackson havia lançado “O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei”, último volume da trilogia, em 2003 — apenas dois antes de sua nova e igualmente faraônica empreitada, portanto —, mas a vontade de impressionar a qualquer custo, um ativo em seu trabalho que, a exemplo da constante reinvenção da computação gráfica, um dos braços da tecnologia cada vez mais acachapante citada anteriormente, tem a essência das substâncias maravilhosas com que a natureza socorre a medicina: um pequeno descuido e o remédio que se poderia usar para tirar dos braços da morte do enfermo torna-se a toxina que o arruína irreversivelmente.

Decerto a grande novidade e a melhor coisa no “King Kong” de Jackson é o entendimento de inegável lirismo que tem acerca da mudança, dos tempos e da própria vida, condição que orienta a estada mesma do homem neste plano. A miséria e a fome da Grande Depressão dos anos 1930, apenas o efeito mais imediato pós-quebra da Bolsa de Nova York, em 24 de outubro de 1929, é escancarado em imagens perturbadoras, para dizer o mínimo. A montagem de Jamie Selkirk dá a sensação de que câmera desliza por dentro da grade das jaulas de bichos confortavelmente instalados no zoológico de Nova York ao passo que um grupo de mulheres e crianças se amontoa nas calçadas de Manhattan e homens de todas as idades dependem da caridade dos voluntários que distribuem sopa e biscoitos, uma vez ao dia. Pouco depois, Ann Darrow, a atriz vivida por Naomi Watts, apresenta sua melhor performance naquele que seria seu último espetáculo antes da interdição do teatro em que trabalha, famoso pelos vaudevilles que encantavam uma Broadway até então imune a eventuais solavancos da economia mais sólida do capitalismo. Watts dá essa carga de refinamento e melancolia ao texto de Jackson, Fran Walsh e Philippa Boyens, nesse primeiro muito semelhante a visão também bastante poética de Merian C. Cooper (1893-1973) e Ernest B. Schoedsack (1893-1979), diretores da primeira versão, de 1933 — Cooper é também o autor do roteiro original, juntamente com o jornalista e escritor Edgar Wallace (1875-1932). O filme persevera na beleza, com sua protagonista no auge da forma física, captando o semblante desalentado de Watts em primeiríssimo plano, e é nítida a amargura que sua senhorita Darrow vai largando pelo caminho, especialmente na sequência em que cruza com um certo Kenny K, um cafetão que não chega a conhecer no sentido bíblico e de cuja referência não se vale. Esse é o gancho para que Carl Denham, o diretor meio picareta interpretado por Jack Black, apareça em sua vida. É aqui que as coisas desandam miseravelmente — e isso nada tem a ver com a carismática presença do comediante, impagável numa encarnação livre de Orson Welles (1915-1985), com quem se parece assombrosamente.

Jackson explica brevemente que Denham aspira a rodar o filme de sua vida — mesmo sem um tostão no bolso da calças remendadas, devendo a agiotas e procurado pela polícia depois de ter surrupiado os negativos do produção que o ligava a um grande estúdio — e literalmente  embarca nesse sonho com Darrow. Navegando num monte de lata rumo a lugar nemhum, o personagem de Black conta com as páginas de Jack Driscoll, o criativo roteirista de Adrien Brody, a fim de dar forma a seus delírios que, como delírios, mudam a todo instante. Numa dessas, atracam na Ilha da Caveira, onde, enfim, o macacão do título os espera, especialmente pela figura loura e exuberante de personificada por Watts, fetiche inesgotável que o cinema revive de tempos em tempos. A melhor parte do filme de Jackson ficara para trás. Mesmo com toda a licença poética, resta artificioso a possível justificativa para a inserção de dinossauros e outros monstros pré-históricos se não a necessidade de impressionar a qualquer custo, o que o longa de John Guillermin (1925-2015) fizera com mais propriedade em 1976 — fora dele a ideia de dependurar o rei dos símios e uma mulher de cabelos platinados no topo do edifício Empire State. A experiência deste “King Kong” vale como um aviso do mal que pode fazer a tecnologia aos enredos que o tempo não consegue subverter. Ou se se gosta muito de macacos.


Filme: King Kong
Direção: Peter Jackson
Ano: 2005
Gêneros: Terror/Aventura/Fantasia
Nota: 7/10