Um filme único: suspense psicológico da Netflix vai te atordoar até a última cena Divulgação / Netflix

Um filme único: suspense psicológico da Netflix vai te atordoar até a última cena

O homem vaga pelo mundo ansiando pelos milagres de que não é digno, ao passo que tenta desvencilhar-se dos obstáculos que ele mesmo impõe ao longo de sua jornada. Misturando-se ao caos da vida enquanto se devota a ocultar os opróbrios que recordam-no de sua condição tão miserável, o gênero humano a muito custo dribla as tragédias que o perseguem sem cessar, lidando mal com o desconforto de saber que por mais longe que chegue, conquistando os reinos em que gostosamente se perde, realizando os sonhos que condenam a uma existência farsesca, não há de livrar-se nunca dos fantasmas que se lhe incrustam na alma feito o marisco no rochedo. Os espectros que também somos nós — e que saem à rua nas circunstâncias menos oportunas —, revelando nossos mistérios para qualquer um, mas cada vez mais indecifráveis para nós mesmos, deixam seus jazigos em “Homunculus” pelas mãos de um diretor atento.

Criou-se uma falsa polêmica em torno do filme, mas Takashi Shimizu é hábil em contorná-la. “Acusado” de carregar nas tintas do drama, pesando a mão em sua leitura do mangá de Hideo Yamamoto, Shimizu apenas se concentra nos aspectos menos óbvios da trama e oferece ao público reflexões um tanto pessoais, sim, mas nunca gratuitas ou disparatadas. O roteiro, dele em parceria com Eisuke Naito e Nairuki Matsuhisa, prima por uma irregularidade proposital, acelerando e refreando a força dos acontecimentos conforme a narrativa vá se tornando mais fluida, num ritmo muito orgânico, o que proporciona um contraste que ratifica as intenções do diretor quanto a evitar o previsível. Esse impulso de marcar “Homunculus” com assinatura nota-se também na maneira como Shimizu verte para seu estilo todo próprio as boas histórias que terminam por se pasteurizar na visão de realizadores mais imediatistas, menos sensíveis — e nada cultos — que grassam na indústria do cinema mundo afora, inclusive na do Japão, plural e erudita.

Há muito do “Sonhos” (1990), de Akira Kurosawa (1910-1998), neste trabalho de Shimizu, e esta é uma qualidade ambivalente. Na mesma cadência em que exibe os tipos espantosamente comuns e desditosos que recheiam seu filme, o diretor já os despe de sua aparente normalidade, arrancando-lhes o que têm de nebuloso, mas só depois de um cerco sutil. Decerto Ryô Narita na pele de Manabu Ito, o estudante de medicina que desenvolve um método muito pouco científico para chegar aos meandros do cérebro é o grande responsável pelas melhores sequências de “Homunculus”, mormente quando explica o que diabo vem a ser isso. Ostentando um visual em plena conformidade com o que a moçada gosta no Japão do século 21, seu cabelo entre o roxo e o rosa pálido, suas roupas justas e com estampas animais e a postura underground, mas sempre cortês, remetem o público a estética dos yaoi sem rodeios. A inferência não é de todo equivocada; entretanto, esse espécime exótico da rica fauna humana nipônica contemporânea prende-se mesmo é pelo que existe por trás da carne, como se assiste na sequência em que fica registrado seu encontro fortuito com uma garota na lanchonete que costuma frequentar, observado com inveja e admiração por Susumu Nakoshi, de Gō Ayano, espécie de médium de que fala boa parte da produção de Yamamoto, tão seduzido pela morte e suas adjacências que a vida acena-lhe um adeus e ele sequer se dá conta.


Filme: Homunculus
Direção: Takashi Shimizu
Ano: 2021
Gêneros: Mistério/Suspense/Terror
Nota: 9/10