Refilmagem de clássico do terror, na Netflix, tem alguns dos momentos mais tensos e agonizantes da história do cinema

Refilmagem de clássico do terror, na Netflix, tem alguns dos momentos mais tensos e agonizantes da história do cinema

O mal encerra seus mistérios. Homiziadas precisamente nos lugares de que ninguém jamais suspeita, as forças diabólicas que tentam se assenhorear do mundo seduzem o homem, por seu turno cada vez mais perdido e mais selvagem, farto de passar por gentil. Com muito menos força do que supunha, a natureza humana mostra-se disposto a se submeter a determinadas provas — umas tão óbvias quanto fundamentais, outras bastante refinadas e só aplicáveis em contextos específicos —, e revela seu lado desabridamente soturno, colocando na rua a besta que o habita e o domina nos momentos em que a razão não lhe é conveniente. Ao mesmo tempo, a vida se nos apresenta como uma pletora das cobranças que fazemos a nós mesmos, plenas de seus ulteriores dilemas existenciais tão característicos, muitos profundos como um balde, e as incertezas quanto ao que reserva-nos o futuro, essas, sim, inquietantes. O medo da surpresa, do que não se conhece, dos tantos inesperados da vida que sempre se anunciam naqueles momentos em que uma ou outra fragilidade nos persegue sói recrudescer à revelia do nosso desejo de coragem, arrebatando-nos quando esperávamos apenas bem-aventurança, esplendor, prazer, vida, enfim.

Uns mais do que outros, estamos todos vulneráveis às armadilhas que nos prepara o destino, tornadas ainda mais perigosas com a interferência da nossa própria imaginação. Ao longo da história da evolução, a biologia humana foi burilando mecanismos quanto a se dirimir os efeitos das ilusões que com que nós mesmos nos atacamos, quiçá já prevendo, de algum jeito entre o pragmatismo e o milagre, que conseguiríamos subverter a sabedoria em seu estado mais puro. A versão de Dave Meyers para “A Morte Pede Carona”, emblemático no que o terror tem de mais genuíno — seu poder de levar à reflexão valendo-se ora da sutileza, ora dos expedientes mais abjetos —, dá novo fôlego ao que Robert Harmon quis dizer com a metáfora do título, que aqui fica um pouco menos etérea e invade o terreno do confronto, entre personagens que querem viver e o antagonista, anjo da morte, sua e de quem lhe atravessa o caminho.

O roteiro de Eric Bernt, Eric Red e Jake Wade Wall prescinde dos elementos que respeitam mais às possíveis sensações idiossincrásicas do espectador, a forma como cada um há de absorver a trama para assumir toda a crueza que pode haver num enredo simplório, mas também elaborado, mormente nos trechos em que se vai conhecendo a composição da psique do vilão, ao cabo de dois atos quase monótonos e bastante previsíveis. O John Ryder (um trocadilho para “caroneiro”, em tradução livre) a que Sean Bean dá vida e talante próprios sustenta boa parte do filme, mesmo que Meyers redobre a aposta na psicopatia e na maldade gratuita do monstro, só se obrigando a fornecer algumas pistas que sugiram uma explicação qualquer para as perversões de Ryder no desfecho. Enquanto isso, Grace e Jim, o casal pouco menos doentio e inadequado de Sophia Bush e Zachary Knighton — em que pese a beleza de congelar espelho dos dois —, ganham espaço, às vezes sem corresponder a toda a expectativa de que o diretor lhes investe, até que a reviravolta inicial da narrativa, diretamente relacionada ao maníaco interpretado por Bean degringolam em outros arcos dramáticos, fechados com regularidade vacilante.

A fotografia de James Hawkinson permanece sempre num tom muito abaixo do criado pela natureza, mesmo nas tomadas à luz do sol escaldante do Novo México, momento em que opta pelo sépia e pelo simples estouro da luz, como se ressaltasse o aviso que emerge das profundezas da história, com toda a serenidade. É esse brilho, tomado de vigor, que costuma cegar e perder os homens.


Filme: A Morte Pede Carona
Direção: Dave Meyers
Ano: 2007
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 8/10