Filme com Tom Hanks, na Netflix, vai te deixar na ponta do sofá com reviravoltas de tirar o fôlego Divulgação / Sony Pictures

Filme com Tom Hanks, na Netflix, vai te deixar na ponta do sofá com reviravoltas de tirar o fôlego

À medida que se vive, mais se cristaliza em nós a ideia de que a vida é um curioso desafio, em que vencida cada etapa, impõe-se nós a seguinte, e mais outra, e outra ainda, até que essas mil situações que mais parecem testes a nossa resistência, se tornem para nós a fonte mesma do que podemos ter de mais genuíno, a capacidade de suportar a incerteza fundamental que cobre tudo, desfaz dos planos mais ordinários com que nos atrevemos a sonhar, atropela com brutal violência o que julgamos precioso e sobrepuja-nos sua natureza sobranceira, de pesada sombra que eclipsa qualquer luz, do funesto que macula de castigo hediondo a salvação possível e aturde-nos mesmo no que temos de mais indevassável, que pensávamos só nosso, nos detalhes de nós mesmos que julgávamos conhecer tão bem, reafirmando estar sempre muito certa do domínio que exerce sobre todas as criaturas. A busca pelo motivo de tantas obscuras intenções, o porquê de nos lançarmos em abismos tão fundos e tão habitados dos monstros que nós mesmos embalamos — enquanto não seca em nós a crença de que a vida é, antes de qualquer outra coisa, sonho — não deixa de ser um estímulo de força descomunal, que puxa-nos para cima, para onde ainda existe o ar, num movimento paradoxal e capcioso, que só traz consigo a lufada da destruição mais implacável, oculta sob a máscara da utopia que proclama uma época menos aterradora.

Passam-se os anos e menos se entende o real propósito que nos move, para que seguimos tentando, por que a vida toma essa ou aquela direção. A nós, só nos cabe continuar, atravessar a selva funda que há no coração de cada um e dar o nosso máximo quanto a compreender o estar no mundo como uma experiência que pode se pautar pelo inusitado, mesmo pelo tétrico, mas que tem, sim, algum fundamento. Quando o homem é capaz de integrar-se de todo a seu lado mais inculto, pode também derrubar as fronteiras geofísicas e políticas, a mitologia, a história e quiçá o próprio tempo, provando-se a criatura mais poderosa que existe. O poder contido no espírito do homem, seus limites e em que proporção o ambiente em que está inserido confere-lhe legitimidade para levar seus planos adiante ou o desautoriza, são alguns dos temas que Ron Howard aborda em “Inferno”, alegoria das ilusões tragadas pelo desejo de mais autoridade, que degringola num cenário de caos, doença e morte.

Transcorridos dez anos da estreia de “O Código Da Vinci” (2006), a coleção de diatribes heréticas embaladas em marketing grosseiro assinadas por Dan Brown que Howard conseguira transformar num dos maiores campeões de bilheteria da década, o diretor torna a mirar as obsessões de Brown — de quem também extraiu material para “Anjos e Demônios” (2009), que os iniciados trataram de desancar, mesmo que a história passe longe da arrogância e da pseudofilosofia dos outros dois. Aqui, o diretor conduz o roteiro de David Koepp, também responsável pelo texto de “Anjos e Demônios”, junto com Akiva Goldsman e o próprio Howard, para uma crítica arguta e até inventiva do capitalismo e sua pletora de desgraças, tragédias íntimas e coletivas que tomam os ares do mais grotesco apocalipse graças à habilidade de Howard em administrar o caos e os atentados à lógica que, se chegam a provocar risos involuntários, acirram o sentimento de claustrofobia, de angústia, de desamparo.

Enredos como esses dependem sobremaneira de atores maduros artisticamente, e um dos que encarnam mais perfeitamente tal conceito ainda é Tom Hanks. Apesar de ter andado cuspindo num dos pratos que o fizeram multimilionário (com toda a justiça), Hanks, profissional até o osso, empresta sua credibilidade e a visão poética que tem acerca de tudo ao filme. Depois de uma abertura não menos que patética, com Ben Foster na pele de Bertrand Zobrist, uma espécie de Steve Jobs da escatologia, o Robert Langdon entra em cena a fim de desanuviar um pouco a narrativa — malgrado esteja num leito de hospital, a sofrer de convulsões depois do que parece ter sido um acidente — e mostrar quem é a estrela. A parceria com Felicity Jones, como Sienna Brooks, a médica que o assiste, é o ponto alto de uma trama que repisa ideias como moléstias na humanidade e os homens como sua doença mais inclemente.

“A Divina Comédia”, de Dante Alighieri (1265-1321) entra de contrabando, artificiosamente, na boca de personagens meio rasos demais num filme que é puro entretenimento. Se fosse só por esse caminho, “Inferno” seria um verdadeiro paraíso.


Filme: Inferno
Direção: Ron Howard
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Mistério/Ação
Nota: 8/10