Inspirado em uma história real, filme que escandalizou o mundo, com Natalie Portman e Julianne Moore, estreou no Prime Video Divulgação / Netflix

Inspirado em uma história real, filme que escandalizou o mundo, com Natalie Portman e Julianne Moore, estreou no Prime Video

Em 18 de junho de 1996, Mary Kay Letourneau (1962-2020), uma professora do ensino fundamental lotada em Washington, foi encontrada por policiais com Vili Fualaau, um aluno de apenas 12 anos, dentro do carro num lugar ermo. O gosto por aventuras extraconjugais pedófilas rendeu a Letourneau oito anos de cadeia — ela conseguiu reverter a pena para a prestação de trabalhos comunitários em 4 de agosto de 2004 —, uma filha, um casamento de catorze anos e provocou um dos maiores abalos na sociedade americana, com reflexos no ordenamento jurídico e nos estatutos de unidades educacionais de todo o mundo, sem que jamais tenha se arrependido de nada.

Uma parte algo romanceada da vida pós-cárcere dessa mulher cheia de autoconfiança e mágoa vem à superfície em “Segredos de um Escândalo”, uma variação sobre a história de Letourneau ornamentada com elementos cênicos que imprimem a narrativa ainda mais ambiguidade e estiramento dramático, por meio do qual Todd Haynes provoca o espectador. Livremente inspirado nesse caso de amor monstruoso, o roteiro de Samy Burch e seu marido, Alex Mechanik, faz do longa um estimulante exercício de metalinguagem — a principal diferença em relação a um outro conto sobre relações anômalas — ao incluir uma terceira peça, não por acaso a que chacoalha ainda mais o já atormentado convívio do improvável casal que protagoniza o enredo, integrando-se àquela família ao passo que sente-lhe uma maldisfarçada repulsa.

Gracie Atherton-Yoo e Joe Yoo vivem num aparente sossego em Savannah, Geórgia, sudeste dos Estados Unidos, até a chegada de

Elizabeth Berry, uma atriz que vem à cidade para misturar-se ao clã e absorver o máximo de detalhes que conseguir sobre Gracie, sua personagem num filme independente que pretende estrelar em breve. Vinte anos antes, Gracie, agora uma dona de casa que aceita encomendas de bolos da vizinhança, acabou formalmente indiciada pelo “caso” com o colega com quem trabalhava num pet shop, um garoto de treze anos que frequentava a sétima série de uma escola das redondezas. Haynes reconstitui o passado de Gracie e Joe sem nunca se valer de nenhuma imagem, apenas por meio do ótimo texto de Burch e Mechanik, ao passo que não descuida da nova integrante da dinâmica da casa, que os conhece durante um churrasco para amigos próximos. Gracie está no seu habitat, dedicando-se a atividades domésticas, como tem feito desde que saíra da penitenciária, onde nasceram os gêmeos do casal, e Julianne Moore aos poucos vai revestindo de humanidade essa figura naturalmente asquerosa, enquanto o diretor trata de estabelecer as diferenças de sua protagonista para Sheba Hart, a professora vivida por Cate Blanchett em “Notas Sobre um Escândalo” (2006), de Richard Eyre.

A evidente semelhança entre os dois trabalhos, a começar pelo título, torna-se mais diáfana conforme se conhece mais acerca do temperamento de Gracie. Ao contrário da homóloga de há dezessete anos, Gracie parece nunca ter tido nada de que gostasse de se ocupar à exceção da família que constitui com Joe, malgrado viesse de um casamento “normal”, com Tom, de D.W. Moffett. Após a exposição do conflito inicial,  Haynes acertadamente investe em episódios da primeira família da personagem central, e a sequência em que aparece Georgie, o filho mais velho de Gracie e Tom interpretado com bravura e convicção por Cory Michael Smith, é, sem dúvida, uma das elucidativas para que se tente descer aos subterrâneos mais abafados do espírito dessa mulher.

No meio do segundo ato, o eixo narrativo volta-se outra vez para Gracie, Joe e Elizabeth, mantendo-se o foco nesses dois últimos em diversos momentos. Enquanto Joe, com Charles Melton num desempenho cheio de nuanças, revela as fragilidades que qualquer um enxerga desde o princípio, Elizabeth sobe e desce, é ora sobranceira, ora servil àquela nova realidade em que se metera por sua vontade, e nesse ponto “Segredos de um Escândalo” começa a dar a virada que Haynes sustenta até o encerramento. Numa outra cena assombrosamente reveladora, Gracie e Elizabeth, diante do espelho, trocam confidências sob o pretexto da anfitriã estar dando algumas orientações quanto ao modo como a atriz deve se maquiar para dar-lhe no tal filme.

Com a graça de sempre, quiçá incorporando a entidade santa e diabólica que se assenhora dos artistas, Natalie Portman, a exemplo do que fizera em “Cisne Negro” (2010), a linda metáfora sobre sucesso e martírio de Darren Aronofsky, arranca de Elizabeth sua máscara de boa moça. Sua personagem tenta roubar a alma da outra, numa referência quase explícita a Liv Ullmann e Bibi Andersson (1935-2019) em “Quando Duas Mulheres Pecam” (1966), de Ingmar Bergman (1918-2007). A ideia de metamorfose é inescapável, e não é gratuita a menção ao hobby de Joe, que mantém um viveiro de lagartas que, na iminência do desfecho, viram monarcas e voam para a América do Sul, livrando-se daquele inferno. “Gente insegura é perigosa”, diz Gracie a Elizabeth, sem se conseguir saber se está se referindo a si mesma ou mandando um recado a sua agora ex-aliada. Que filme extraordinário!


Filme: Segredos de um Escândalo
Direção: Todd Haynes
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense 
Nota: 10