A melhor animação de 2022 (e favorita ao Oscar) acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

A melhor animação de 2022 (e favorita ao Oscar) acaba de estrear na Netflix

Todo indivíduo que tenha uma prática espiritual qualquer sabe que o diabo não é tão feio quanto o pintam. Incorporações, fantasmas, demônios que se apossam de corpos humanos e falam por suas bocas, existem, mas são, além de raros, fenômenos que tocam mais a realidade à luz do inconsciente do que o fantástico, o extraterreno ou o maligno propriamente dito. Manifestações hiperfísicas são muitas vezes “apenas” um sintoma da histeria coletiva que nos assalta diuturnamente na vida real, a uns mais que a outros. Quando nos damos conta disso, não nada mais a se fazer além de nos rendermos ao arrebatamento do devaneio, cujo poder de provocar espanto rivaliza com a capacidade de acordar sentimentos desde sempre acaçapados, mas que ansiavam por uma oportunidade de deixar os meandros trevosos da alma e emergir à superfície. No instante em que se dá tal evento, tão aterrador quanto mágico, é como se uma imensa borboleta enfim se libertasse do casulo e dominasse o céu, que até parecia existir só por sua causa.

Convivem dentro de cada um de nós o bem e o mal, cabendo-nos um exercício ora mais brando, ora mais árduo de sufocar este para que o primeiro apareça, malgrado haja, naturalmente, quem se especialize no movimento contrário, dando vazão a seus instintos, mas também a cálculos e ideais que, à primeira vista, emulam a verdade, muito embora não passem de ilusão ou, pior, de estratégia para alcançar metas obscuras. Rindo castigam-se os costumes, segundo a máxima latina celebrizada pelo dramaturgo Gil Vicente (1465-1536), o pai do teatro e da sátira lusitanos, e assim também pensa o cineasta americano Henry Selick, um dos maiores diretores da animação em stop motion em atividade. Em “Wendell & Wild” (2022), seu novo trabalho, Selick agrega a excelência da técnica a uma trama sofisticada, plena de alegorias sobre a eterna necessidade de se fazer escolhas sem prejuízo do sonho, a finitude, o luto, as feiuras estética e metafísica da existência, ao passo que dá suas alfinetadas no capitalismo e na religião.

A anti-heroína do roteiro do diretor, coescrito com Jordan Peele, talento por trás do incensado “Não! Não Olhe!” (2022), se flagra vítima de seus demônios interiores depois da morte dos pais. Por óbvio, o argumento da menina culpar-se pela tragédia é elaborado por Selick e Peele de modo a fazer o público suspeitar que Kat Elliot, dublada por Lyric Ross, tem mesmo responsabilidade pela grande desgraça em sua vida, ideia que ganha força à medida que esses gênios do mal ganham espaço na narrativa. A computação gráfica, aliada ao carisma de Keegan-Michael Key e Peele, dão vida a Wendell e Wild, essas duas influências tão nefastas na personalidade de Kat quanto divertidas para o público. Sem nenhum outro parente, a garota vai para o internato coordenado pela irmã Helley, evidente trocadilho com “hell”, “inferno”, em inglês — fixação crescente de Selick —, que ganha um temperamento marcado pela ambiguidade na leitura de Angela Bassett, de longe o tipo mais bem-construído da história.

Do segundo para o terceiro ato, “Wendell & Wild” toma impulso ainda maior a fim de esclarecer a presença de Kat no educandário, dirigido pelo padre Bests, de James Hong, figura aparentemente anódina na trama e que faz que some, apenas para essurgir maior e seguro o bastante quanto a demonstrar suas intenções malévolas. É esse o gancho aproveitado por Selick para incluir em seu filme o casal de magnatas que planeja comprar o colégio com a intenção de transformá-lo numa penitenciária. Os dois são pais de Siobhan, a mocinha de Tamara Smart, preta, mas de cabelos e olhos claros, como os deles, que encarna uma das grandes reviravoltas do longa.

Uma vez que se descobre uma donzela do inferno, capaz de enfrentar criaturas do submundo de igual para igual e, ainda mais, trazer de volta à vida aqueles que já se foram, Kat se depara com o mais perturbador dilema que poderia assaltá-la, resolvido com serenidade pelo diretor. Como em quase todos os episódios de “Love, Death & Robots” (2019), antologia de curtas de animação idealizada por David Fincher e Tim Miller, “Wendell & Wild” exalta a importância de se enfrentar temas espinhosos da condição humana sem se permitir intimidar, o que só é possível com humor. Ainda que negro.


Filme: Wendell & Wild
Direção: Henry Selick
Ano: 2022
Gêneros: Animação/Terror/Fantasia/Aventura/Comédia
Nota: 9/10