Apesar de direção irregular, novo filme de Halle Berry, na Netflix, dá uma lição que vai além do UFC

Apesar de direção irregular, novo filme de Halle Berry, na Netflix, dá uma lição que vai além do UFC

A estreia de um ator na direção, depois de 30 anos de carreira diante das câmeras, deveria ser celebrada como um marco, a superação de desafios, a escalada rumo a novas possibilidades num ofício de alternativas ilimitadas, mas ingrato. Como realizadora, pode-se dizer que Halle Berry tem muitos rounds pela frente — como Jackie Justice, sua protagonista em “Ferida” (2020), um drama cujo mote esportivo sempre tem seus encantos.

A história, que remete ao surrado clichê da superação por meio da luta (literalmente), começa em meio a uma névoa, insinuando que tudo resta indefinido ali. Em seguida, a câmera mostra uma atleta apavorada, uma fera a quem já maltrataram tanto que não suportaria mais uma nova vergastada, por mínima que fosse. Jackie estava disputando a conquista do cinturão do UFC, a maior liga de lutas de ultimato do mundo. Um arrastão de vozes que oscilam de intensidade vai se formando no ambiente, e Jackie sabe que aquilo não é nada bom. Ela escala o alambrado do octógono, foge da jaula e a imagem apaga em fade out.

Passados seis anos, ela reaparece, agora se virando como empregada doméstica e morando com Desi, um namorado meio marginal, que também faz as vezes de seu empresário, vivido por Adan Canto, mas seus problemas são bem mais severos do que ter se metido com um sujeito que a faz enfrentar mulheres com o dobro de seu tamanho por puro prazer fetichista. Tentando esquecer as tantas surras do destino, Jackie passara a beber com regularidade e, entre um gole e outro, torna-se uma alcoólatra invencível, daquelas que escondem a bebida em frascos de produto de limpeza a fim de enganar quem a rodeia, e, principalmente, a si mesma. Viver do MMA, a prática de várias artes marciais que o UFC popularizou em combates que deixam um rastro de narizes e pernas quebrados mundo afora, parece fora de seu radar, até que se dá a primeira grande reviravolta (talvez a única digna desse nome) no roteiro de Michelle Rosenfarb.

O argumento da mulher que se dedica a um esporte violento, paralelo entre a própria vida e a condição feminina desde que o mundo é mundo, explorado com toda a profundidade de Clint Eastwood em “Menina de Ouro” (2004), volta à cena em “Ferida”. Há entre Jackie e a inesquecível Maggie Fitzgerald de Hilary Swank uma série de coincidências vexatórias — e tanto pior se se considerar que, no primeiro tratamento do texto, Jackie era uma mulher branca, de ascendência irlandesa e trinta anos mais jovem que Berry, perfil muito semelhante ao de Maggie e Swank dezessete anos atrás —, pontuadas por um ou outro ponto mais carregado de melodrama. Por já estar na meia-idade, Jackie, à diferença de Maggie, tem um passado, que sempre volta quando ainda se tem contas a acertar com ele. Para a lutadora, esse passado pode atender pelo nome de Angel, a mãe drogada e promíscua (ainda hoje) de uma Adriane Lenox em excelente forma, com quem não fala há séculos ou, mais precisamente, por Manny (Danny Boyd Jr.), o garoto que a velha deixa na porta de Jackie, um filho com quem não tem nada em comum — até porque o abandonara recém-nascido. A resistência em se extravasar essa bolha de negligência, descaso, desamor seria uma subtrama de altíssimo poder dramatúrgico, explorada muito aquém do que poderia, bem como o previsível romance entre Jackie e a treinadora Buddhakan, de Sheila Atim, como Lenox uma surpresa inestimável do enredo, cirurgicamente moldada para o personagem. Sua mistura de doçura e rudeza encanta, e o espectador sente ainda mais raiva de Berry, digo, de Jackie, por rejeitá-la, malgrado possa entender suas razões.

“Ferida” é o caso típico de filme mediano composto por ideias ótimas. Halle Berry poderia ter feito deste o papel de sua vida — e é visível seu empenho —, mas Jackie Justice é muito mais do que ela pode mastigar. Em muitos momentos, a atriz se mostra cansada (e não fisicamente), deixando clara a falta de afinidade com o restante do elenco. Como se contaminada pela apatia da personagem, sua intérprete é palha úmida em meio ao fogaréu que arde em volta, mesmo quando Jackie parece que vai virar o jogo na retomada da carreira ao disputar outra vez o título, agora contra Lady Killer (Valentina Shevchenko). Oxalá a história desperte o interesse de aficionados por esportes sangrentos, que, goste-se ou não, demandam muita disciplina e músculos. Isso dá para se dizer que “Ferida” tem.