Novo filme da Netflix é uma mistura de H.P. Lovecraft com David Lynch

Novo filme da Netflix é uma mistura de H.P. Lovecraft com David Lynch

Em muitas ocasiões, um filme se destaca não exatamente pelo que quer dizer, mas pela forma como quer fazê-lo. Trabalhos cuja temática é tida como aparentemente banal tornam-se obras de arte de primeira grandeza, verdadeiras telas em movimento, dando vida à genialidade de Vincent van Gogh (1853-1890) e Edvard Munch (1863-1944). Essa seria uma definição bastante razoável para a obra de David Lynch, por exemplo, que com produções como “Duna” (1984) e “Cidades dos Sonhos” (2001) mescla por igual as influências de Van Gogh e Munch no que cada um dos pintores apresentou como o tour de force de suas prolíficas carreiras, Munch bem mais que o holandês, por óbvio, uma vez que viveu quase meio século além. Lynch se tornou célebre por abusar das cores, como Van Gogh, em suas possibilidades quase infinitas quando se dispõe dos equipamentos certos, aliando a elas o poder da imaginação, do delírio, à luz do apresentado pelo norueguês.

Historia de lo Oculto” (2020) passa longe de primar pelo uso de cores, exagerado ou não, até porque foi rodado em preto-e-branco. Com tal opção estética, o diretor argentino Cristian Ponce remete seu filme aos primórdios da televisão, trazendo à tela os bastidores de um programa, o “60 Minutos para a Meia-noite”, transmitido pela última vez. Para fazer com que ninguém se esqueça da atração, os produtores escolhem convidar Adrian Marcato, do excelente German Baudino, que parece disposto a revelar uma conspiração envolvendo o presidente da Argentina num conselho de bruxos que, por meio de rituais satânicos, garantiram que fosse eleito. Se o aspecto do terror que funde ingredientes políticos e religiosos não parece nada revolucionário, o filme inegavelmente cresce ao lançar mão de um mote ainda mais surrado — o da equipe de jornalistas abnegados que dão o sangue (ou quase) por uma boa matéria, tudo em nome do famigerado interesse público — a fim de obter uma possível confissão do mandatário maior do país ao vivo. Em menos de uma hora.

O filme até tem algo de lynchiano no que se refere ao nonsense da trama, mas, como sói acontecer, é a veia fantástica que mesmeriza o espectador, o que remete à narrativa de suspense noir maciçamente apreciada em autores do gênio de Edgar Allan Poe (1809-1849) e H.P. Lovecraft (1890-1937). Em “Historia de lo Oculto”, Ponce faz a mágica acontecer da forma mais prosaica, como todo bom prestidigitador: mantendo o público atraído por outros elementos da show, como as conjecturas acerca do passado nebuloso de seu país, crivado de déspotas populistas de condutas verdadeiramente macabras, caso de Juan Domingo Perón (1895-1974).

Ao investir o cadáver da mulher, Eva Perón (1919-1952), a Evita — morta prematuramente, aos 33 anos, de câncer no útero — de um misticismo obscurantista, calcado no ocultismo, Perón dera o passo que faltava rumo à sua eternização no poder. A difusão da imagem de Evita como a mãe do povo, uma genuína santa que amparava os desvalidos, foi central no projeto de ascensão política e da manutenção do prestígio de Perón, que desde o casamento com Evita, em 1945, só esteve longe da Casa Rosada entre 1956 e 1972. Juan Domingo Perón morre em 1° de julho de 1974, deixando na Presidência da Argentina sua terceira mulher, María Estela Martínez Perón, a Isabelita, com quem se casara em 1961.

O sobrenatural em “Historia de lo Oculto” vai sendo absorvido aos poucos. Transitando entre o terror, o suspense e a crítica social, o filme consegue cativar públicos os mais diversos, entre os quais os que não perdiam os programas jornalísticos voltados ao esclarecimento de eventos misteriosos, a exemplo de “Acredite Se Quiser”, febre nos anos 1980. Ao apresentar casos que flertavam abertamente com o bizarro, com o mundo cão, como o de Phineas Gage, que sobrevive depois de passar horas com uma barra de ferro atravessada na cabeça, o ator Jack Palance (1919-2006) suscitava na audiência o gosto pelo mistério, nunca se sabendo ao certo o que era mesmo verdade e o que pertencia somente ao mundo da mera especulação. Como em “Acredite Se Quiser”, “60 Minutos para a Meia-noite” precisa contar com a cumplicidade e a condescendência do público, nada tão difícil de se conseguir num mundo desde sempre injusto, tedioso e insano, em que tiranos de todos os matizes ideológicos fazem daquele que deveria ser o espaço mais nobre para o homem um picadeiro, no centro do qual destilam seu veneno reacionário, homofóbico, de culto desabrido à ignorância.

Guiando-se pela premissa de fazer seu filme assustador ainda que não dispusesse dos gatilhos cênicos de pânico, Cristian Ponce entrega um trabalho equilibrado, que enfatiza a configuração estética. Ao se valer da exposição de argumentos muito bem escondidos por uma humanidade com razão envergonhada de suas tantas misérias — as que lhe são impostas e as que ela própria cria para si —, “Historia de lo Oculto” se presta a uma análise do quanto a mentira, com as suas incontáveis ramificações, se embrenha em determinado grupo social, num país, no espírito de um tempo. A mentira liberta.