Clarices, carolinas e hildas: um mapa das escritoras brasileiras contemporâneas

Clarices, carolinas e hildas: um mapa das escritoras brasileiras contemporâneas

Ser escritora no Brasil significa enfrentar desafios simultâneos. O primeiro deles é a entrada no campo literário dominado historicamente por homens brancos, héteros e de classe média. Esse é o obstáculo cultural e social que, ao longo dos anos e de forma lenta, vai sendo superado com o surgimento de mais e mais autoras. Ao mesmo tempo, existe no plano estético o peso da figura de Clarice Lispector, a “poeta forte” na literatura brasileira contemporânea, para usar uma ideia de Harold Bloom.

Quase como espectro, Clarice ronda a cabeça de homens e mulheres que escrevem. Ela é a sombra onde as escritoras tentam se abrigar e, também, o local de onde elas querem escapar. A escrita criadora busca o desvio para se afastar do escritor “forte”, e a influência é fazer diferente de quem veio antes — e jamais fazer algo parecido. Hoje, a autora de “Paixão Segundo GH” é lida como alguém que explorou, como ninguém, a psicologia dos personagens. Outro ponto que fascina artistas experimentais é a radicalização no uso da linguagem em “Água Viva” e “Um Sopro de Vida”.

Carola Saavedra refletiu recentemente sobre o fantasma clariceano nas letras brasileiras e sobre a existência ou não da “escrita feminina”. É um debate reivindicado por quem está em busca de novos olhares no campo literário, mas que atiça o conservadorismo assustado com as mudanças. Homens temem a perda do lugar de fala, o monopólio da ideia de universal, de escrever para todos.

“O conceito de escrita feminina parte de uma premissa essencialista ao enxergar na produção de autoras um estilo próprio feminino, isto é, as mulheres escreveriam como mulheres por possuírem um corpo de mulher e terem uma experiência única ligada a esse corpo”, nota a autora “Com armas sonolentas — um romance de formação” (2018). “A teoria da escrita feminina acabou se tornando por muito tempo o grande calcanhar de Aquiles das escritoras, porque, ao se pressupor a existência de uma escrita feminina, dava-se a toda a sua produção um caráter de literatura inferior, de menor qualidade. O outro da norma, o segundo sexo.”

Da premissa essencialista, parte-se para o enquadramento das escritoras em nicho literário evidentemente redutor. Ressalte-se: aos homens foi entregue o cetro do universalismo, e as mulheres foram colocados nos particularismos. O quadradinho das mulheres seria “uma escrita poética, intimista, autorreferente e não linear”, aponta Saavedra, no ensaio “Um teto todo nosso”. O texto remete ao clássico de Virginia Woolf (“Um Teto Todo Seu”) e faz parte do livro “O Mundo Desdobrável — Ensaios para Depois do Fim” (2021). Em seus escritos, Carola dá exemplo de como sair dos “cercadinhos” reservados ao feminino, fazendo um giro por temas literários, filosóficos e científicos.

Como leitor interessado e não especialista em questões femininas, fico pensando se um homem teria condições de enxergar, absorver e interpretar o mundo para escrever o romance “Conto da Aia”, de Margaret Atwood, ou a análise histórica “Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva”, de Silvia Federici. Tampouco consigo imaginar um escritor construindo a intricada amizade de Lila e Lenu nos quatros livros da série napolitana de Elena Ferrante, com os jogos de ciúme, disputas, solidariedade e laços que parecem indestrutíveis entre as personagens.

Brasileiras que escrevem  

Em seu ensaio, Carola Saavedra apontou linhagens de escritoras no Brasil. O recorte dela colocou Clarice Lispector em primeiro plano. A segunda “poeta forte” é Hilda Hilst, com a escrita indomesticável e abusada — jamais se espera que uma mulher trate do mundo, das pessoas e das coisas como ela faz. Outra força é o enigma Carolina Maria de Jesus, que invadiu o campo literário na virada da década de 1950 para 1960. Até hoje a autora de “Quarto de Despejo” é motivo de fascínio e repulsa (“isso não é literatura!”, dizem os homens letrados que amam cercadinhos).

A escritora brasileira Clarice Lispector l Foto: Rocco

A ficção brasileira produzida nos últimos 20 anos tem um número grande de escritoras que exploram possibilidades. Virou lugar comum a ideia de diversidade e multiplicidade na cultura atual, afinal a arte contemporânea resiste ao enquadramento e à identificação de uma unidade estética. Tudo é múltiplo — e o capitalismo adora uma vitrine diversificada e sempre igual. Porém, é possível apontar traços em comuns, estilos compartilhados, pontos de convergência. A partir de um recorte pessoal, fiz um breve mapeamento de escritoras brasileiras que lançaram obras desde o ano 2000.

De início, me chamam atenção as autoras que escrevem ficção e têm uma escrita próxima do ensaio. Elas mantêm relações estreitas com a academia, artes plásticas e pensamento filosófico. Surgiu assim, nos últimos anos, a produção quase inclassificável e que carrega um tom reflexivo e extremamente profundo. Penso nos casos de Veronica Stigger (“Sombrio Ermo Turvo”, 2020); Laura Erber (“Esquilos de Pavlov”, 2013); Tatiana Salem Levy (“Vista Chinesa”, 2021, e “Dois Rios”, 2012); Marcia Tiburi (“Magnólia”, 2005, “A Mulher de Costas”, 2006, e “O Manto”, 2009).

Ana Paula Maial Foto: Companhia das Letras

A experimentação está nas obras de escritoras que saem do realismo mais tradicional. É um segundo grupo de autoras que percebo, juntos com as “ensaístas”. As narrativas vão para uma linha mais abstrata para capturar a realidade. O destaque nesse agrupamento é, sem dúvida, Ana Paula Maia. Ela teve amplo reconhecimento com “Assim na Terra como Embaixo da Terra” (2017) e “Enterre seus Mortos” (2019). Sua empreitada recente foi a série “Desalma” (2020), da plataforma Globoplay. Uma história de mistério que junta lendas eslavas no Sul do Brasil com os temas da autora como a morte de animais.   

Ainda no experimentalismo, Daniela Lima se destaca ao imaginar a existência de bio-robôs para limpar o acidente nuclear de Chernobyl. O e-book “Sem Importância Coletiva” (2014) foi a narrativa que antecipou a onda recente de ficção distópica no Brasil e que se enveredou por alegorias catastróficas. Também ousado na forma literária é “Operação Impensável” (2015), de Vanessa Barbara. Ela narra uma guerra conjugal e faz analogias hilárias com a Guerra Fria, por meio de e-mails, comentários de filmes e jogos de tabuleiro. Conta-se uma história atraente por meio de técnicas fora do comum.

Anseio de narratividade  

Em 2000, a crítica literária Leyla Perrone-Moisés apontou ficcionistas que recorriam às “conquistas técnicas da narrativa moderna a serviço da fabulação”. Contar boas histórias sem ilusões do velho realismo tornou-se forma utilizada pela produção contemporânea. Não há mais o vanguardismo estético do início do século 20, porém os achados do Alto Modernismo (o fluxo de consciência dos personagens, a escrita mínima que se aproxima do silêncio, narrador inconfiável) são explorados. A ficção brasileira tem uma série de obras recentes muito bem-sucedidas ao dar respostas ao “anseio de narratividade”, termo usado por Leyla.

Veronica Stigger l Foto: Granta

Nessa narrativa bem estruturada, é interessante notar os livros que buscam a delicadeza dos personagens, sentimentos profundos, em contraponto ao brutalismo que encena o lado horrível da vida. Mas não existe conforto; apenas sai de cena a violência física, crua e gratuita. Os temas são os mais variados e ligados ao ser humano. Essa psicologia dos personagens aparece em autoras de alta qualidade, como Natália Timerman (“Copo Vazio”, 2021), Adriana Lisboa (“Azul Corvo”, 2010) e Aline Bei (“O Peso do Pássaro Morto”, 2017).

Em termos mais familiares para os leitores, algumas autoras encontram resposta positiva ao tratar dos dramas humanos clássicos. Emerge a sensibilidade de personagens femininas que torna atraente, por exemplo, a obra de Elena Ferrante. Nesse grupo, incluo Martha Batalha (“A Vida invisível de Eurídice Gusmão”, 2016) e Carla Madeira (“Tudo é Rio”, 2014). Esta última virou fenômeno, por conta da onda que as mudanças tecnológicas possibilitaram às pequenas editoras. Carla acabou sendo “descoberta” pelas grandes editoras, em 2020, após a forte repercussão no boca-a-boca das redes sociais.

O campo literário das mulheres já tem suas “veteranas” que construíram uma obra sólida nas últimas décadas. O reconhecimento delas veio por meio dos prêmios, o número bom de leitores fiéis e as críticas favoráveis. Sãos os casos de Maria Valéria Rezende (“Outros Cantos”, 2016); Beatriz Bracher (“Não Falei”, 2004); Patrícia Melo (“Gog Magog”, 2017); e Elvira Vigna (“Nada a Dizer”, 2010) — esta última faleceu quatro anos atrás, no auge da sua produção literária. Nelas, a escrita apurada serve de meio para capturar a realidade do presente e os traumas da memória.

Tatiana Salem Levy l Foto: Todavia

A boa surpresa tem sido a mão segura de Fernanda Torres. Conhecida como atriz, ela se mostrou hábil para montar um painel geracional do Brasil, dos anos 1960 para cá, no romance “A Glória e seu Cortejo de Horrores” (2017). Também as narrativas de “Fim” (2013) comprovam a capacidade de fazer humor com uma série de histórias curtas de homens idosos no dia da morte. Há boas doses de “pena galhofa” e “tinta da melancolia” nos contos. E a ironia do romance carrega traços de Philip Roth em suas novelas finais.

Também consolidas estão Conceição Evaristo (“Olhos D´água”, 2014) e de Ana Maria Gonçalves (“Um Defeito de Cor”, 2006), que abordam a questão racial. Há um interesse crescente do público leitor e dos pesquisadores acadêmicos por autoras e autores negros. Esse movimento já chegou ao mercado editorial que redescobriu nos últimos anos a pensadora Lélia Gonzalez, morta em 1994. Mas a referência maior é, sem dúvida, a obra de Carolina Maria de Jesus, que entrou para o cânone e tem, neste ano, o relançamento de seus diários esgotados há muito tempo.

O futuro para a ficção feita por mulheres indica uma produção intensa e que ocupa mais espaços, bem longe dos cercadinhos. A nova geração aparece em edições de altíssimo nível, o que abre portas para um reconhecimento amplo de público e crítica. Penso nos nomes de Carol Bensimon (“O Clube dos Jardineiros de Fumaça”, 2017); Fabiane Guimarães (“Apague a Luz se for Chorar”, 2021); Natália Borges Polesso (“Amora”, 2016); Simone Campos (“Nada Vai Acontecer com Você”, 2021); Luisa Geisler (“Luzes de Emergência se Acenderão Automaticamente, 2014); e Natércia Pontes (“Os Tais Caquinhos”, 2021).

Palavra concentrada

Nos dias atuais, a prosa de ficção é o segmento mais lido pelos leitores e atraente para as editoras. A inventividade, porém, está presente em várias formas, como a dramaturgia e a poesia. No teatro, Grace Passô é uma das vozes promissoras da nova geração. A cena teatral passou por uma revolução nos últimos 20 anos, com a proliferação de coletivos que ocupam espaços abandonados das cidades Desse movimento, surgiu Grace (autora negra), que atuou e escreveu “Marcha para Zenturo” (2009) e “Congresso Internacional do Medo” (2008). As peças já saíram em formato de livro.

Cláudia Roquette-Pintol Foto: Rascunho

A poesia feita por mulheres também se destaca. Depois de um período classicizante e conservador, voltaram os experimentos com a linguagem e o olhar crítico para a realidade. Tenho uma preferência por Angélica Freitas, em livros como “Canções de Atormentar” (2020). A autora é capaz de abordar questões domésticas banais e do espaço público. Sua poesia é um bom sismógrafo das catástrofes cotidianas e globais. Quem recebe atenção maior da crítica é Ana Martins Marques, com o livro mais recente “Risque Esta Palavra” (2021) — que merece um texto à parte no futuro.

Na poesia, o contato com o mundo concreto é significativo. “O crítico precisa ter a atualidade bem agarrada pelos chifres”, dizia Walter Benjamin. Podemos substituir “crítico” por poeta no caso de Cláudia Roquette-Pinto, com o já clássico “Sítio”, do livro “Corola” (2000). “O horizonte [criado por Cláudia] está nublado, empoeirado, enfumaçado, irrespirável, não se enxerga nada, não se pode sequer saber se o sol está se pondo — um clima de sufocação que culmina na imagem do ‘céu invertido’, equivalente à tópica do ‘mundo às avessas’, figura clássica de catástrofe, de mundo fora-de-ordem”, nota Iumna Maria Simon, em um ensaio que analisou a nova geração de poetas.

E por falar em novas de poetas mulheres, uma excelente introdução é a coletânea “As 29 Poetas Hoje” (2021), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, uma veterana no mapeamento do que sacode a cultura e os feminismos. O livro tem de tudo e um pouco mais, e mostra as escritoras encarando as coisas, o espírito e as pessoas. Certamente, devo ter esquecido nomes, porém a intenção de todo mapa é fazer uma representação, em escala reduzida, de um vasto mundo.