Um velho em Buenos Aires

Um velho em Buenos Aires

Ele pediu dois alfajores para, depois, sentar-se na esquina de uma agradável rua arborizada. Foi quando percebeu uma linda moça passando, morena, de andar que impunha lentidão aos relógios e à visão. Vestida de modo fino e vanguardista, seus cabelos negros denunciavam, assim como os seus olhos, traços de origem mediterrânea, misturados com alguma escapadela de uma avó ou avô.

Ela passou como se fosse um sonho e, mesmo minutos depois, embora ele se esforçasse para lembrá-la, só lhe restava uma impressão da beleza; nenhum espasmo físico digno da juventude lhe era mais permitido.

A idade tinha-lhe alcançado e seus violentos pesadelos o impediam, por timidez ou medo da revelação, de deitar-se novamente ao lado de uma mulher.

O jornal que folheava trazia um texto de Borges, autor que ele se impunha odiar, pelas posições favoráveis àquela religião que abominava; porém, confessou para si ter ficado intrigado com um texto sobre uma biblioteca hexagonal e infinita, como também ficava intrigado nos tempos em que ia atrás de objetos e referências místicas.

Buscou compreender a metáfora, embora a Cabala lhe fosse asquerosa.  A Cabala e os terreiros negros soavam-lhe como a bruxaria dos impuros. Tanto por isso, não atravessou a fronteira para o Brasil pelo simples e único medo de não conseguir se controlar caso presenciasse um ritual como aquele.

Comidos os alfajores, pagou a conta e saiu. Ainda consternado pelos olhos daquela mulher, caminhou rápido por entre senhores de ternos bem cortados e senhoras exageradamente maquiladas.

Entrou bruscamente numa livraria para buscar a tal biblioteca, em momento de extrema ausência de lucidez, causada pelo medo da imaginação. Não a encontrou e não seria capaz de atinar que ela estava invisível a quem fosse incapaz de compreender uma metáfora sobre Deus.

Se alguém andou distante de Deus foi ele, mas esse mesmo Deus não lhe permitira saber isso.

Seguiu para casa a passos largos. A rua, desde a saída de sua cidade natal, tornara-se um fardo necessário, habitual, mas com o qual não se acostumava.

A solidão, que antes lhe parecia um sonho ou uma vitória, agora mais parecia uma expectativa sem futuro. Esse pressentimento confundiu-se com a imagem dos guardiões da biblioteca, sobre os quais lera no jornal daquela manhã, fazendo-o, assim, imaginar-se dentro de um livro proibido, guardado com vida própria e expropriado de tudo.

Sentia-se, com o característico frio que prenuncia o medo, observado e seguido. Há pouco mais de mês acalmava-se todos os dias da ideia de que a perseguição dos mortos, embora atroz, lhe seria justa; eram os intoxicados a lhe intoxicar as lembranças e causar-lhe tosses madrugada adentro, como se a idade e o carbono fossem uma coisa só nas suas alucinações.

Chegou à casa com pressa. Duas esquinas antes tinha acelerado o passo, pressentindo algo quando a esquina soprou um vento diferente. Pensou ser a chuva, antigo incômodo da época da guerra e das noites sob as lanternas. O telefone tocou ao mesmo tempo em que sentiu uma forte presença.

Temeu — o que não era do seu feito — virar as costas.

A confusão de um abraço e um tranco foi imediata. O forte cheiro nas narinas. E lentamente fechou os olhos.

2

Num lugar estranho, recobrada a consciência ainda mal cheirosa, ouviu um idioma que sentiu (sim, foi pela pele) conhecer.

A memória, é verdade, se esvaíra ao longo dos anos, mas ele insistiu em tentar. Passou pelo filtro da sua boa cabeça o seguinte: retirou o alemão e algumas outras línguas do leste europeu daquele emaranhado e, finalmente, sentiu o temor horripilante na espinha: os homens falavam a língua das sinagogas.

Ao perceber-se suando, a temperatura deu-lhe a prova do pior. Logo, descobriu onde estava. Tentou comunicar-se em espanhol, mas os homens sentados, com roupas típicas das autoridades militares, riram do que sabiam ser o cinismo desesperado.

Por um segundo rezou ao céu para que estivesse sequestrado num subúrbio de Buenos Aires e que aqueles judeus pobres logo pediriam algo, um resgate.

Só depois se deu conta de que não tinha amigos e nem familiares. Sem amor e família, os resgates — ou mesmo a esperança dos resgastes — não existem. Temeu, então, por sua vida. Pela primeira vez as sombras dos corpos e dos cheiros apareceram-lhes nos olhos e suas narinas tornaram-se ralos do passado.

Dias, ou a sensação de dias, se passaram.

Um funcionário, em certo dia, entrou, durante a madrugada, em sua cela. Parecia estar escondido dos demais vigias, tamanhos os cuidados que tomou.

Falando alemão, perguntou-lhe quais eram suas intenções com a sua vinda a Israel. Ele não entendeu. Adormecera em Buenos Aires e acordara, sabia só agora, em algum lugar muito longe dali.

Ainda tinha dúvidas se estava em Israel ou se os “porcos” lhe aplicavam algum golpe, “típico deles”, pensou! Sem resposta, o tempo passou.

Duas semanas depois, soube, por um funcionário que entregava todos os dias a comida, um judeu polonês de idade e antigo preso dos campos, que ele foi encontrado dormindo dentro de um avião no aeroporto de Haifa.

Segundo os jornais, reproduzindo fontes oficiais, comprara uma passagem aérea com antecedência de três meses, deixando em seu apartamento bilhete com aviso de que logo voltaria, embora para pessoas que não conhecia. 

Esse velho funcionário, homem de modos simples, pediu-lhe que rezasse pelo mal que tinha feito a tantas pessoas inocentes. Ele respondeu secamente: “Não sei como estou aqui, nem o porquê”.

O velho polonês, então, talvez por misericórdia, contou-lhe do dia em que, por alguma divergência entre as autoridades alemãs, o hoje prisioneiro saiu revoltado da caserna, tirou do coldre sua pistola e disparou em um jovem que carregava outros corpos para a vala comum. A pobre vítima do tiro era o irmão mais velho do funcionário.

3

Sentiu forte e incomum compaixão ao saber que esse homem, o último provavelmente a respeitá-lo com o diálogo, tinha-lhe horror, por essa cena inesquecível.

Sentiu um grande vazio. Sentiu-se pela primeira vez só, como se aquela cena renovada lhe roubasse a companhia de um dos seus mortos, livrando-o de sua cabeça doentia e podendo agora descansar em paz.

Em verdade, desde sempre se arrependera de ter cumprido ordens; não por humanidade, mas, provavelmente, pela vaidade de quem se sentia mais e era menos do que as suas aspirações.

Acreditava na paixão de seus líderes; acreditava que a migração seria benéfica aos judeus; até ensaiava posicionamentos contrários a certas violências que presenciou nos campos, mas não tinha autoridade para questioná-las e todos os seus dramas pessoais poderiam ser expurgados ao descontar suas raivas, iras, seus desejos, nos prisioneiros e prisioneiras que pecaram ao rezar para o mesmo Deus ausente.

Algumas vezes, sentiu-se preocupado quando estava em seu exílio. Percebia pelos julgamentos noticiados que, ao redor do mundo, todos os verdadeiros maquinistas da morte usavam a desculpa do medo e da obediência como pretexto pelo que praticaram — contavam uma verdade que, segundo seu próprio julgamento, pertencia a eles e não aos outros.

Lembrou-se, então, da ocasião do assassínio que lhe foi narrado. Estava servindo ao seu comandante, como motorista; em reunião, esse gritou seu nome e pediu-lhe que servisse um chá. Prontamente, deixou o veículo e entrou.

Na verdade, o comandante queria confrontá-lo com o que lhe acabara de contar o novo major: certa vez ouvira do motorista, bêbado num bar, ser contra o envio para os campos de pessoas que nada tinham causado mal.

Servido o chá, o comandante afirmou, em alto tom, que seu motorista era um homem leal ao reich. Imediatamente, lembrou-se da feição do major naquela fatídica noite. O major estava acompanhado de lindíssima mulher, sentado em espaçoso sofá, à meia luz, no bar agora sem nome. Seus olhos cruzaram-se algumas vezes naquela noite. Ele se esqueceu do major. O major, não se esqueceu dele.

Voltando das memórias do bar, viu, como se fosse um estalo, quando alguém arrastou uma Luger pela mesa. Fez-se silêncio diante da expectativa que, para os sentados, era lúdica.

Sabia qual prova aguardavam e sabia que a sua própria vida dependeria do seu próximo ato. Pensou no que todos os homens de vinte anos pensam no instante da verdade. Pensou em tudo e em todos, mas principalmente em si. Fundamentalmente em si.

Então, abriu a porta da caserna e viu um jovem passar. Desceu as escadas e posicionou-se. Mas atirou na direção do jovem sem rosto, pelas costas, com a sua própria arma, e não com a que lhe fora passada. Os olhares risonhos daqueles velhos sentados à mesa e que o observavam pela fresta, entre um copo e outro, o miravam novamente, agora, enquanto, pela primeira vez,  perguntava-se a razão daquele tiro.

Quando o filme parou de rodar no cinema da sua memória, teve a sensação de rememorar um moço, um pouco mais jovem, aterrorizado com o disparo e jogando-se, aos gritos, por cima do corpo esticado e já sem vida.

Seria aquele rapaz o hoje velho funcionário e que, por obra do acaso, testemunharia seus últimos dias?

Sim, era aquele olhar, embora não fosse mais um jovem olhar.

O funcionário a trazer-lhe comida, hoje, seria a testemunha e irmão do sangue jorrado tantos anos antes?

Este hoje senhor voltou no dia seguinte, mas com roupas diferentes.

Trajava terno e sapatos absolutamente belos. Não era mais um limpador, um simples servente da prisão. Provavelmente, o tempo fizera-lhe um grande empresário ou um alto político.

Pediu a um oficial que abrisse a cela e lhe fornecesse uma cadeira. Acendeu um cigarro, que gentilmente ofereceu ao preso. Foi prontamente aceito.

E perguntou: — Por quê?

Já sabia que o velho custodiado o reconhecera. Seus olhos de aflição, agora, eram os mesmos olhos de há tantos anos. Ambos situavam-se naquele instante da dor eterna e os olhos do sofredor e do que fez sofrer gritavam em silêncio e entre si. O prisioneiro narrou o filme que acabara de rememorar. O velho, num incômodo indescritível, levantou-se com lágrimas nos olhos e disse ao guarda algo inteligível. E desapareceu.

Apenas uma semana depois, ele voltou e saudou o prisioneiro. Estava ali para explicar sua vida depois do assassinato pérfido e como, de certa forma, os destinos dos dois tinham sido selados naquele velho campo, no interior da Polônia.

O cavalheiro disse ter vivido a vida, tê-la ganhado com base na esperança de um dia poder entender aquele acontecimento. E que sua vida resumiu-se a uma indagação, uma dúvida, alimentando-se com a esperança de uma explicação, como se alimentava com um prato de comida.

Porém, agora que soubera a verdade, a vida não tinha mais sentido. O distinto senhor levantou-se e disparou um tiro na própria cabeça. O prisioneiro tentou impedi-lo, mas não conseguiu.

Quando as lágrimas começaram a correr, abriu bem os olhos e se percebeu num hospital em Buenos Aires. Fora socorrido de um derrame, no chão de sua sala. Perdera os movimentos dos braços e pernas. Com a boca paralisada, mal conseguia resmungar.

E, então, entendeu a dor causada àquele olhar, estivesse o rosto dessa dor vivo ou não.

Não suportaria mais viver entre fantasmas e impedindo-se de julgar a si mesmo. Decidiu-se, então, pelo suicídio.

Mas deitado, paralisado, agora sofrendo em suas lembranças, percebeu que seus dedos eram incapazes de mais uma morte. Estava condenado a viver, lembrando.