Retrato do rio como visão do paraíso

Retrato do rio como visão do paraíso

Tendo rodado o mundo — agradeço diariamente por viver na era do cartão de crédito —, há alguns anos me veio certa ânsia de conhecer este nosso Brasilzão. Fui aplacando aos poucos, digamos, minha patriótica vontade; faltava-me ainda, porém, ver o Norte, donde fui dar com os costados, outro dia, no encontro do Tapajós com o Amazonas. E em verdade vos digo, meus amigos: nenhuma fotografia jamais fará justiça à imponência do lugar — é qualquer coisa de majestoso, de inesperado, uma visão que nos arranca, do fundo do peito, sentimentos adormecidos de ufanismo.

O Tapajós abre-se numa boca de inacreditáveis vinte quilômetros de largura, mas se afunila, na sua desembocadura, num canal menor por onde entra no Amazonas, como se tivesse se arrependido de tamanha exibição de força, isso exatamente em frente a Santarém. Já o Amazonas chega “estreitinho” a esse “encontro marcado”, por assim dizer, creio que talvez tenha ali dez quilômetros de margem a margem, e uma faixa mínima de terra o separa do Tapajós no seu lado direito; no esquerdo, outro filete de pouco tamanho o mantém afastado de umas tantas lagoas que, imagino, devam ser braços seus (na seca, claro, pois tudo pode se emendar durante o período da cheia). Um pouco mais abaixo (ou acima, caso se pense em termos de corrente e contracorrente), o rio Arapiuns cai no Tapajós, também abrindo a bocarra numa grande foz. A moldura desse mundaréu de águas, no período de sua baixa, são centenas de quilômetros de praias brancas e isoladas como poucas vezes vi.

Houve amigos na viagem, evidentemente, que os meus amigos têm participado das minhas pequenas tragédias e atribulações há muito, muito tempo, mas também me seguem nas fugazes alegrias, e, sendo eles quem são, isso qualificou tremendamente a aventura; contudo, foi a paisagem, sem dúvida, que comandou os dias em que lá estivemos, assim como aquela imensidão de águas ordena a vida de todos em Santarém desde 1661, data de sua fundação por jesuítas (até o padre Antônio Vieira andou dando uma bispada no lugar, visita que fez crescer meu respeito por ele e pela própria cidade).

É um espanto, já disse e repito. Não foi sem motivo que Sérgio Buarque de Holanda escreveu “Visão do Paraíso”: a visão edênica das descobertas era inevitável — já imaginaram portugueses e espanhóis, acostumados com o Douro e o Tejo, dando de cara com o encontro do azul Tapajós e o marrom Amazonas? Haverá no mundo algo que se compare? Essa primeira visão, de tão surreal para mim, eu a busco em todos os livros que encontro sobre a heroica navegação que Francisco de Orellana fez até foz do Amazonas, em 1541-42, quando tudo ali era desconhecido (o primeiro relato dessa expedição sendo de Frei Gaspar de Carvajal, que dela participou). Sabe-se que Vincente Pinzón, capitão de um dos navios da frota de Colombo em 1492, descera o rio uns poucos quilômetros, a partir da foz, em 1499, empresa que pouco se compara com o grandioso feito de Orellana; mais tarde, em 1560-61, a expedição Ursúa-Aguirre, retratada de modo bastante ficcional por Werner Herzog em “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, terminou em tragédia; por fim, há quem diga que Américo Vespúcio — para alguns, navegador de pouco talento, apesar da fama — também possa ter visto brevemente a foz do Amazonas. É antigo, então, o fascínio daquelas águas, e um batismo assim tão precoce não deixa de ser uma carta de nobreza entre as terras do Novo Mundo.

Não creio que tenha havido aventura semelhante (talvez apenas a marcha de Alexandre Magno pela Ásia adentro se aproxime). Mesmo os navegadores espanhóis e portugueses anteriores tinham algum conhecimento, ou alguma intuição por causa do conhecimento limitado, do que iriam encontrar, e os conquistadores da Lua e dos pólos se prepararam imensamente para suas proezas. Agora notem: Orellana e Gonzalo Pizarro, irmão do mais famoso Francisco Pizarro, iniciaram sua jornada em busca do “País da Canela”, um bosque sem fim de canela, e do não menos mítico “El Dorado” (que ainda seguiria tirando o sono de muitos exploradores até o século 20, o infeliz Perry Fawcett entre eles), inicialmente com o necessário planejamento, claro, mas Gonzalo acabou retornando a Quito e deixou Orellana seguir rumo ao desconhecido e à glória, e a partir daí a viagem continuou aos trancos e barrancos, como se lê no relato de Carvajal. Historiadores ainda discutem se Orellana e seus homens decidiram-se deliberadamente pela aventura ou se simplesmente não puderam retornar rio acima por causa das cheias e correntes. De qualquer modo, foi uma epopeia ainda hoje incrível: entraram no rio Amazonas pelo rio Napo e o desceram até sua foz, e depois, já no oceano, chegaram à Isla Cubagua, próxima à Isla de Margarita, na costa da Venezuela. Tão portentosa foi a façanha que Orellana, alguns anos mais tarde, retornou à região com o propósito de a colonizar, mas acabou morrendo, junto com centenas de outros homens que o acompanhavam, depois de ter entrado, pelo Atlântico, num curso menor do Amazonas, nunca encontrando o canal principal. Os portugueses, aliás, somente fariam o mesmo caminho, primeiro no sentido contrário, de Belém a Quito, e depois de volta a Belém, quase um século mais tarde, em 1637-1639, com a expedição de Pedro Teixeira, outro fato que atesta a grandiosidade da façanha de Orellana (na segunda parte dessa viagem, Cristóbal de Acuña acompanhou Teixeira até Belém, deixando-nos seu testemunho no livro “O Novo Descobrimento do Rio Amazonas”).

Mas voltemos ao Tapajós: o que Orellana e seus homens terão pensado quando viram o seu encontro com o Amazonas?

Amazonas

Pois eu vi muita coisa. Além das águas, há ainda as miudezas que constituem o equipamento de vida de um povo específico: a forma de assar o pirarucu e fazer a farofa de aviú, o jambo colocado na pinga, certa lentidão no trato com os turistas, como se fôssemos alunos ineptos de alguma forma de slow life talvez mais correta e digna do que nossa eterna correria, tudo se amalgamando numa brasilidade que parece, à primeira vista, diferente da nossa, mas que no fundo é somente uma trama do mesmo tecido em que todos vivemos e gastamos o suor diário. Ser brasileiro, afinal, também é conhecer nossa aventura civilizatória e nela se reconhecer — ou “aventuras”, mesmo as heterodoxas.

A viagem se iniciou mais como uma brincadeira entre amigos e talvez como resposta à vontade de rodar o Brasil que mencionei, vontade às vezes mais teórica do que prática. Pouco ou nada eu sabia sobre o Amazonas, Pará e Tapajós. Mas ali algo ocorreu: retornei com a certeza de que muito tenho perdido em razão desse conhecimento escasso e, desde então, tenho por isso buscado todos os livros sobre o assunto: a história natural da região, narrativas de exploradores, relatos de aventureiros que desceram os rios em balsas precárias ou se perderam… La Condamine, Langsdorff, Wallace, Bates, Spruce e Herndon são nomes agora conhecido e admirados; John Hemming é o autor de uma de minhas novas bíblias, “Árvore de Rios: a História da Amazônia”. Só posso então dizer que uma paixão nasceu ali para mim, com tudo de inefável, misterioso e — as paixões são assim, não? — trabalhoso que se espera de algo novo que passa a ocupar um tempo antes gasto com outras coisas menos úteis.

Tenho visto muita coisa bela nesta vida, as capitais europeias, as cidades históricas brasileiras e o nosso litoral, o Caribe e o Saara, mas confesso sem nenhum bridão sentimental: emocionei-me lá naquele pedaço de “Brasil profundo”. Cuidemos daquilo tudo, preocupemo-nos com o governador do Pará e o prefeito de Santarém, ouçamos com as orelhas em pé as notícias que nos chegarem de lá, pois que a sintonia fina daquele mundaréu — cheias e secas sazonais, praias, matas, cardumes e bichos de terra —, sintonia inescrutável na sua inteireza, talvez também seja parte de outra sintonia fina, também um tanto inescrutável, aquela simbiose de atavismos e conexões que nos faz brasileiros neste exato lugar e tempo.

Enfim, é isto: fui, vi — e o Tapajós me venceu.