Meu Livro Violeta, de Ian McEwan, entra para a galeria dos piores textos da história recente da literatura Philip Roth versus Ian McEwan

Meu Livro Violeta, de Ian McEwan, entra para a galeria dos piores textos da história recente da literatura

“Meu Livro Violeta” é um conto de segunda categoria, aquém de “William Wilson”, de Edgar Allan Poe

O conto é a arte literária mais da contenção do que necessariamente da brevidade. Aos escritores deveria ser recomendado que começassem a profissa — na verdade, maldição — produzindo contos, curtos e, depois, longos. Mais tarde, poderiam ou deveriam tentar o romance, que, ao contrário do conto, que é a construção de uma cidade, é a edificação de uma civilização. Guy de Maupassant e Anton Tchekhov por certo resistiram à tentação de espichar determinadas historietas e transformá-las em obras caudalosas — num romance. O conto deve aos dois, não sua existência, e sim a ideia de que pode ser grande literatura — até maior do que certos romances, alguns até muito bons.

Na recém-lançada (e ótima) “Revista da UBE”, há um contículo de Valdivino Braz, “A face oculta da maldade”, com apenas duas páginas. À primeira vista, dada a brevidade, desprezível. Mas não é nada disso. O escritor relata a história de uma família que mora numa fazenda. Há o narrador, quiçá onisciente, mas o “controle” da história é do menino Inocêncio.

Meu Livro Violeta (Companhia das Letras, 127 páginas, tradução de Jorio Dauster), do escritor britânico Ian McEwan.

Inocêncio avisa ao pai, Inácio, que seu filhote de perdigueiro havia sido morto num pilão. Virou paçoca. A principal suspeita é Mariana, mãe do garoto e doida de pedra, que detesta cachorro. Mas quem matou mesmo o cãozinho? Não dá para revelar, para não estragar o prazer dos possíveis leitores da história. Mas o forte da narrativa é a contenção empreendida por Valdivino Braz e a percepção escancarada de que a maldade pode estar onde menos se imagina. Uma maldade nada inocente (mas com cara de) — ao estilo de Raskólnikov, o protagonista de “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski — e sem culpa expiada. Porque a culpa, transferida, se torna, digamos, prazer.

Dos contos de Edgar Allan Poe (1809-1849), “William Wilson” (consta do livro “Contos de Imaginação e Mistério”, Editora Tordesilhas, 424 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), de Edgar Allan Poe, é um dos mais emblemáticos. Raskólnikov é, como um dos personagens da história de Valdivino Braz, um de seus filhos.

William Wilson é mau e sua maldade guarda certo grau de estilização. É quase uma estética, coisa a ser admirada. É o narrador — suspeito, por vezes, insuspeito, aqui e ali. “Os homens em geral tornam-se vis gradualmente. De mim, num instante, toda virtude caiu por inteiro, como um manto”, analisa-se a personagem, psicanalista de si mesma. “Acaso não terei vivido em um sonho?”, pergunta-se. É possível, claro. Mas é uma forma de se “perdoar”.

Mesmo próximo do real, William Wilson não é o nome verdadeiro do protagonista. O leitor não fica sabendo qual é. Mas, de repente, aparece outro William Wilson. Aparentemente, antípoda; bom, ao contrário do mau. O que o “original” faz, o “simulacro” desfaz — impedindo a desarmonia da sociedade. Os dois “nasceram” no mesmo dia — 19 de janeiro de 1809 (mesma data do nascimento de Poe, o que põe mais lenha na fogueira) — e no colégio dizia-se que eram irmãos. “Gêmeos”. Eram parecidos, daí a irmandade vista pelos colegas.

Nestes dois livros figuram os contos “William Wilson”, de Edgar Allan Poe, em que o duplo é destacado, a história de uma maldade aparece como se fosse doçura ou loucura, e “A face oculta da maldade”, de Valdivino Braz, em que o mal aparece numa forma próxima da doçura

Aos poucos, com o duplo “sugando” sua maldade, como se fosse uma estação de tratamento de esgoto, William Wilson começa a fugir… do outro e, sobretudo, de si. Ele sabia que eram parecidos, mas, durante boa parte da história, não vê seu rosto com nitidez, numa recusa, quiçá, de perceber a si mesmo.

Irritado com as (tentativas de) “correções” no seu destino, William Wilson crava uma espada no outro William Wilson. Olhando num grande espelho pensa que está se vendo, mas está percebendo, finalmente, o seu duplo. Eram iguais. Ou melhor, quase.

O que representam os dois William Wilson — que talvez seja um só? É provável que o bom, e nem sabemos direito se é, mas parece, seja uma espécie de consciência fora do lugar. A culpa que só aparece ou só pode ser vista no outro. Ao matar o “irmão”, William Wilson mata a si mesmo…

O que caracteriza o conto é a mestria narrativa de Poe, cujo julgamento moral, dos dois William Wilson, é feito pela história em si e pelo leitor (se quiser), não explicitamente pelo autor ou pelo narrador. “William Wilson” é um conto moral, mas talvez não moralista. O mal é descarnado, como se tivesse não apenas frente — e sim frente e verso —, e exposto em sua crueza, nuance e ambiguidade. Os William Wilson são, ambos, aquilo que os homens podem fazer, e às vezes fazem. O mal e o bem podem habitar o mesmo ser, que, “desmembrado” pela ambivalência, parece dois. O mal, sabe-se, às vezes subjuga o bem, que talvez seja mais frágil e crédulo. Mas matar o bem não é uma vitória do mal. Pode ser uma derrota.

Os breves comentários sobre os contos de Valdivino Braz, de 76 anos, e de Poe, morto há 209 anos, são úteis para acercar-me do conto “Meu Livro Violeta” (Companhia das Letras, 127 páginas, tradução de Jorio Dauster), do escritor britânico Ian McEwan. O conto tem 41 páginas e o livro, um opúsculo, é encorpado pelo libreto “Por Você”.

O conto de McEwan trata da história de dois escritores, Jocelyn Tarbet e Parker Sparrow — espécies de William Wilson, o bom, o primeiro, e o mau, o segundo. Para tornar a história mais cult, o autor cita “Pierre Menard”, de Jorge Luis Borges — mencionado apenas, de maneira íntima, como Borges —, “Se um Viajante Numa Noite de Inverno”, de Italo Calvino, e “A Informação”, de Martin Amis. Há a lembrança de uma briga entre Amis e outro escritor, que não tem o nome listado, mas teria “um nome escocês e uma atitude de inglês”. Seria Julian Patrick Barnes? Talvez não. O amigo de McEwan certamente não brigou tão-somente com o autor do romance “O Papagaio de Flaubert”. A agente literária de Amis era Pat Kavanagh, mulher de Barnes. Ao prescindir de seus serviços, de modo abrupto, o autor de “A Casa dos Encontros” provocou a ira do “amigo”.

Parker Sparrow não é um escritor dos piores, mas seus livros, se ganham críticas razoáveis mas anódinas — o público mal sabe de sua existência —, não vendem, não acontecem. Não são nem malditos. São ignorados. Jocelyn Tarbet, pelo contrário, faz o maior sucesso de público e crítica literária. Eles são amigos. Até muito amigos.

Certa feita, Jocelyn Tarbet escreveu um romance e, avaliando que não tinha qualidade, deixou-o de lado. Parker Sparrow leu-o, escondido, e ficou mesmerizado. O livro era do balacobaco. O que fazer?

O “bom” Parker Sparrow, pai de quatro garotos e bem casado, fez uma cópia do original, em seguida elaborou uma série de anotações e, tendo como base o romance do amigo, escreveu um romance e enviou-o para uma editora. Publicado, fez sucesso. Jocelyn Tarbet, que não tinha o hábito de ler a literatura do colega, não mexeu no exemplar enviado por Parker Sparrow.

Tempos depois, Jocelyn Tarbet desengavetou seu romance, podou-o aqui e ali e o publicou. Parker Sparrow divulgou, de maneira secreta, que havia sido plagiado. A carreira literária do “amigo” — até William Wilson, o mau, cobraria aspas — foi devastada. O que mais aconteceu? Os leitores do livro não saberão lendo este texto. Terão de ler o livro.

O que se pode sugerir é que “Meu Livro Violeta” terá seus defensores — autores de dissertações de mestrado e teses de doutorado, e resenhistas de jornais e revistas —, mas não parece um livro escrito pelo mesmo autor de “Reparação”, “Sábado”, “Balada de Adam Henry”, “Serena”, “Solar” e “Enclausurado”. O conto não fica de pé, é dos mais frágeis textos do escritor britânico.

“Meu Livro Violeta”, se tivesse sido publicado por Adam Smith da Silva, teria passado em branco. A história é bonitinha, ajustadinha, mas ordinária. A “mina”, a disputa entre escritores, é boa, mas é mal explorada. Os dois personagens parecem mais caricaturas — quiçá simulacros — do que personagens convincentes. Jocelyn Tarbet, embora apresentado como um escritor de méritos, parece uma ameba ambulante, um fantasma que anda, um ser que, sem identidade, não se manifesta. Parker Sparrow é mau, quem sabe como um personagem do conto de Valdivino Braz e William Wilson, mas parece até terno, como se fosse a face boa do personagem de Poe. Ele se(nte) culpa? Nada ou quase nada.

O leitor isento, se existe tal figura, terá de se munir de uma vontade de Hércules para aceitar que o conto de McEwan é memorável. Fica-se com a impressão de que se trata de um conto falhado ou de um romance que, não tendo dado certo — como a literatura de Parker Sparrow, antes do plágio —, virou conto. Afinal, assim como Parker Sparrow, também McEwan precisa e quer vender livros. Nem os poetas alimentam-se de brisa.

A sina dos grandes autores — McEwan é um dos melhores; “Reparação” é uma obra-prima — é que todos os seus escritos passam, depois da fama, a ser vistos como “excelentes”, mesmo quando não o são. Como criticar um texto do intocável McEwan? Não dá pé. Mas, cá entre nós e que Jocelyn Tarbet não nos ouça, o conto “Meu Livro Violeta” entra para a galeria dos piores textos da história da literatura.