Sobrevivendo ao domingo

Amigos velhos, e então, como vai o domingo? Paulo Mendes Campos, cronista tão invejável (invejo quem escreve bem) quanto o urso Rubem Braga, escreveu que, para um domingo perfeito, é preciso “ter na véspera o cuidado de escancarar a janela”. Sim, sim, mas não só as janelas físicas: as metafísicas devem ser abertas ainda com mais vigor aos domingos. Abrir-se, eis um mandamento obrigatório, um, por assim dizer, imperativo categórico.

Portanto: já conversaram com o vizinho? Falaram sobre literatura com conhecidos? Ouviram uma canção nunca antes ouvida? Conheceram um escritor ainda capaz de espanto? Presentearam amigos com livros? Trocaram reminiscências com velhos amigos? (E com amigos somente se deve falar “de profundis”, lembrem-se sempre.)

A minha receita de hoje:

1 — Leiam Thomas Bernhard, um ser raivoso e absolutamente necessário (“Origem” e “Extinção”, maravilhas de prosa quase genial).

2 — Ouçam todas as versões possíveis da Suíte n. 1 para violoncelo, primeiro movimento, de Bach, começando com a de Yo-Yo Ma. E leiam sobre Bach, polifonia, etc. etc. etc.

3 — Vejam ou revejam a “cena do cemitério” do filme de Sergio Leone, ouvindo depois a música da cena, “Ecstasy of Gold”, nas versões Morricone e Metallica. Aos domingos, ser exagerado e operístico como Leone é permitido.

4 — Busquem no Instagram uma moça chamada Carmella Rose. Faz tremer os joelhos.

5 — Leiam e releiam um único poema. Dissequem-no. Talvez “Uma faca só lâmina”, “Tabacaria” ou “A máquina do mundo”. Ou qualquer outro, claro. Busquem na internet alguma fortuna crítica sobre o poema, pois que se desasnar é outro imperativo.

6 — “Caymmi e seu violão” deve ser ouvido em volume máximo (Spotfy), com vagas esperanças de que o mar salgado cicatrize algumas feridas causadas por nossa guerra cotidiana (“Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?” — antes de saber que esse verso era de Pessoa, li-o num livro de Amyr Klink, também ele uma espécie de poeta, e o mar entrou em minha vida, assim, pela “janela escancarada” da poesia. Caymmi e Rubem Braga, aliás, foram os nossos maiores “amantes” do mar).

7 — Pequem.

8 — Sintam culpa pelos pecados.

9 — Leiam sobre a vida de algum santo. Sugiro São Lourenço, que, sendo torturado sobre uma grelha, mandou dizer ao carrasco que já estava assado de um lado e precisava portanto ser virado…

10 — Quando a melancolia da tarde se instalar, “A terceira margem do rio” ou o “Eclesiastes” podem dar alguma ligeira paz de espírito — todos estamos no mesmo barco e, vanitas vaninatum, tudo é vaidade.

O resto é inútil aflição de espírito, as brigas políticas, a ressaca, a mulher que não aceita o convite para jantar, as contas vencendo, porque, afinal, o tempo é curto (ubi sunt?):

“Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito.”

(Ladainha dos póstumos Natais, David Mourão-Ferreira.)

Encerro: tchau. (Bella ciao, bella ciao, bella ciao — a esquerda sempre fez boas músicas.) Ex corde,

Marcelo.