O que você fazia enquanto bombas  de gás sarin choviam sobre alvos civis na Síria?

O que você fazia enquanto bombas de gás sarin choviam sobre alvos civis na Síria?

— E aí? O que vai ser?
— Eu gosto do banana-maçã.

Então, fizeram banana-maçã e foi muito bom. Enquanto murchava a clava varicosa entre travesseiros de penas de gansos-tartamudos numa cama king size, suíte número cinco do Luxurious Motel, ele ligou a TV; ela, um cigarro. Não era permitido fumar no recinto, mesmo assim, a moça tragou com gosto um Jeronimo’s sem filtro, sem nada, fumaça pura, das boas, apropriada para pulmões novos e sem frescura. Ele não se importava. Gostava do cheiro das baganas, desde que ela não pusesse fogo no carpete.

Sintonizou o canal 666 para assistir um pouco de Time Of The Beast. Era um jornalista medíocre, falido, morava com a mãe, cheio de dúvidas e dívidas, mesmo assim, sentia-se na obrigação de estar sempre bem informado, ainda que essa reciclagem teórica tivesse que acontecer entre beijos e amassos. Mastigava amendoins. Ouviu o locutor noticiar o bombardeio de gás tóxico na Síria. Cenas terríveis de gente asfixiada surgiram na tela.

— Afogar no seco é uma merda.
— Eu que o diga. Tenho asma desde menina.
— Você deveria parar de fumar. Por que mostram essa porcaria deprimente nos noticiários?

Ele era do ramo. Sabia, sim, muito bem, do que eram capazes os veículos de comunicação para aumentar a audiência. O ataque resultou na morte de dezenas de civis, inclusive velhos e crianças. Sem tremer as mãos, um cameraman focava a lente nas grotescas manobras de ressuscitação cardiorrespiratória aplicadas por leigos sobre os tórax das vítimas. Havia uma palidez mórbida nos rostos. Sentia-se péssimo.

— Muda de canal, gata.
— Esse aqui tá bom?

Apareceu um cara de quatro, com coleira e tudo, chupando os pés de uma negra.

— Esse tá bom.
— Coqueirinho-envergado?
— Coqueirinho-envergado.

Então, fizeram coqueirinho-envergado e ele se sentiu um pouco melhor, apesar de ter ficado aturdido com as imagens de socorro às vítimas em Aleppo. Fumando mais que uma gambá, a moça ligou o rádio. Tocava Lepo-Lepo, uma música horrorosa que liderava a lista das 10-mais-pedidas-pelo-público tinha várias semanas.

— Putz! Isso é o fim do mundo, ele disse.
— O ataque aéreo ou o funk?

Ela se animou. Mulheres livres são quase sempre animadas. Saltou da cama. Ficou estacionada entre ele e a TV. Um avião do caralho. Começou a taxiar nua pela pista, o Jeronimo’s preso entre os lábios finos, parecia a Simone de Beauvoir dando tudo de si, sensualizando ao máximo, buscando captar a total atenção do parceiro. Era uma mulher divertida, 30 anos nas costas, mãe exemplar, uma criatura independente, emocional e financeiramente, dos homens, uma balzaquiana que gostava, sim — por que não? — de sair, beber, sorrir e fazer farra com os amigos.

— Me serve um Cuspe, ele pediu.
— Com gelo?
— Com gelo.
— Posso servir um Ganso Famoso pra mim?
— Não. Não pode. Sem uísque hoje. Se quiser, toma Cuspe comigo. O uísque tá caro à beça. Além do mais, não confio nesse estabelecimento. Deve ser falso. Falso e caro. Sem uísque, tá bom?

Beberam juntos meia garrafa de rum. Sentia-se bêbado e triste, mais triste do que bêbado, aliás, mais triste do que a média dos últimos meses.

— Preciso vazar, homem. Que tal uma saideira?
— Não sei. Fiquei transtornado com aquele lance de criança morta, gente sufocada nas ruas e tudo o mais. Não sei se consigo.
— Banana-maçã. Vamos de banana-maçã. De novo. Você gosta, eu sei.
— Pode ser. Cai dentro.

Então fizeram banana-maçã pela segunda vez naquela noite e foi realmente muito bom. Sentiu uma fome incrível. Vestiram-se. Ligou na recepção. O telefone fedia a esmegma, um nojo. Um cara jogou a conta por baixo da porta.

— Vocês fumaram aí dentro? Não é permitido fumar na suíte número 5, grunhiu.

Incluíram 20% de gorjeta na conta e, de repente, puro passe de mágica, o cara atrás da porta ficou gentil, com a voz muito mais pianinho. Entraram no Vemaguet com cheiro de chiclete. Adorava aquela máquina: um modelo original de 1965, ano em que tinha nascido, marrom, visual retrô, bancos de couro de ornitorrinco-andaluz, silicone líquido sabor tutti-fruti brilhando no painel e o velho som dos Stones ribombando na cabine. Pigarreou.

— Por favor, não fume dentro do carro. Desliga a porra do cigarro.
— Você manda, meu bem.

Simone de Beauvoir jamais responderia daquele jeito, com tamanha presteza e submissão.

— Não consigo parar de pensar na crueldade dos ataques em Aleppo. Que mundo é esse, baby? Quanta loucura.

— Relaxa, meu amor. Que tal um arromba-fecho-éclair, enquanto você dirige pelas cansadas e silenciosas ruas da Velha Pasárgada?

Queria mudar o mundo, mas, não era um contumaz cumpridor de leis. Portanto, aceitou o mimo que violava qualquer código nacional de trânsito. Dirigiu o Vemaguet. Era alta madrugada. Começava a pintar um baixo astral que eu nem lhes conto. Aliás, conto sim. Na próxima carnificina. No próximo bombardeio sobre a cidade.