Não insista. Deus não é mulher

Não insista. Deus não é mulher

Há que se controlar a ira para ler o texto até o fim. Prova de amor maior não há. Faça um esforço. Encare o sacrifício como se fizesse um ato de caridade, um cordeiro imolado, aqueles cinco pilas depositados na urna durante o culto. Boa. É isso aí. É assim que se faz. Vamos começar a história.

Não insista. Deus não é mulher. Aliás, todo mundo sabe, todo mundo diz, a ordem processual da criação, segundo consta dos autos, foi a seguinte: Papai do Céu concebeu primeiro o homem.

— Bingo! E não é que a criatura me saiu à imagem e semelhança?

Em seguida, tomado de tédio, cansaço, banzeira, uma má vontade incrível, uma preguiça descomunal, fez hora-extra nalgum ponto do universo, jogou de salto alto, arrancou daquele novo ser, sem anestesia ou transe, num simples estalar de dedos, uma das costelas e fez, então, a mulher, uma espécie de criatura que lhe serviria de companhia.

— Divirtam-se, filhos. Contudo, não comam maçãs nem fodendo.

O restante da história você já conhece. Rolou maçã. A mulher rebelde, teimosa, com manias de independência, vegana desde os primórdios, preocupada com culotes, filhos, maridos, índices de massa corporal, autoimagem e coisa e tal, trepou na macieira, tomou nas mãos o fruto proibido e nhac! Deu no que deu. Começava ali no Jardim do Éden a louca saga do ser humano no planeta.

No próximo churrasco que houver na laje, melhor dizendo, na próxima encarnação, se a minha alma triste for recrutada do limbo para incorporar em picanhas, não quero nascer mulher nem que a vaca tussa. Mulher sofre demais. Já ouvi isso tantas vezes. Tenho razões mais do que razoáveis para concordar com essa assertiva.

Mulher. Muitas vezes, o fuzilamento com as palavras. Uma desaparecida que não deixou vestígios no bairro. Sumiu do mapa para virar um número numa planilha. Sonhos mortos identificados por cães farejadores, em avançado estado de decomposição, no lote baldio de um coração despedaçado. Mais uma que vai para a pauta do Datena. Mais outra que entra na estatística oficial do Estado.

Mulher, estado crítico do existir. Muitas vezes, choros entrecortados sangrados na escuridão. Corpos atuando como se a cama fosse o palco de um quarto sem plateia. Queria ver um homem simular um orgasmo. No chances! Um chute, um tapa, um murro, um ferimento com arma branca, piadas machistas de humor negro, um pulinho na delegacia para registrar ocorrência. São coisas que acontecem. Aliás, enquanto escrevo, cerca de 500 mulheres são estupradas pelos maridos dentro de casa, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, até que a morte dela os separe. Incompatibilidade de gênios, você sabe.

Mulher. Muitas vezes, adolescentes que fogem de casa para escapar de violência doméstica, do jugo dos pais, seus legais tutores. Teatro de horrores: meninas que divertem marmanjos-monstros. A alcunha de puta usada de forma errada, com má fé, gritada com tremendo ódio, ao invés de sussurrada, sílaba a sílaba, no diminutivo, ao pé-de-ouvido, à espera de um rio caudaloso que haverá de escorrer entre as pernas.

Mulher. Muitas vezes, a redenção de estar, enfim, só. Uma sensação de vazio que não acaba nem com reza brava, nem com 350 ml de silicone em cada mama, nem com uísque, nem com rivotril. Só a loucura salva. As flores de abril a perderem o sentido. Aquele plano-de-ser-feliz-um-dia enclausurado num lar, doce lar. O gosto amargo na língua ao reconhecer que a felicidade morreu à míngua, ao passo que anos se seguiram e dois estranhos envelheceram juntos.

Mulher. Muitas vezes, a sensação de que está estourando a idade de ser feliz. A meretriz confundida com um saco de carnes e ossos que nada sente. Um ser triste que garimpa sobras de dignidade num lixão de arrependimentos: começar do zero, eis a questão. A sensação de que nada de novo há no rugir das tempestades, senão, um poema que quase ninguém leu, escrito por um poeta russo que quase ninguém conhece. É triste a falta de cultura. Povos burros são mais felizes. Riem à toa até da própria desgraça. Políticos bem o sabem. Não vejo a menor graça nisso. Hei de terminar esse texto agora. Não me queira mal. Foi pensado e concebido como um tributo à feminilidade. Eu juro.

Mulher. Muitas vezes, tratada com flores e poesia. Porrete e bala. Pouco importa. Não insista. Se Deus, de fato, existe, definitivamente, não será uma mulher.