Pensam-se absurdos quando a morte lambe os calcanhares

Pensam-se absurdos quando a morte lambe os calcanhares

Quando Roberto começou a quebrar a mobília do consultório todos pensaram que ele estivesse ficando doido. Não estava. Tinha algo parecido com um ouriço-do-mar crescendo e se assanhando dentro dos seus miolos, quase ninguém sabia, não era por menos que se sentia mareado, melancólico, com saudades do mar e das marés, imbuído de uma vontade doída de se mudar, de morar numa cabana de palha na praia, para sair todos os dias de madrugada com amigos pescadores de todas as idades, a fim de fisgar com as próprias mãos os peixes que ele mesmo haveria de limpar, preparar e comer para se manter vivo nesse mundo-de-meu-deus.

“— Esse médico é um grosso”, uma paciente comentou na sala de espera. Roberto tinha a reputação de ser um profissional competente, porém, temperamental.

“— É grosso, mas opera milagres. É o bisturi mais rápido dessas redondezas. Não perde duelos contra tumores. Há rumores que tenha extirpado mais de um milhão. Já operou minhas duas irmãs e vai me operar na semana que vem. Ele nunca treme, é como Deus, além de elegante e charmoso”, retrucou uma velhota cheia de viço e verrugas no rosto.

A secretária do doutor (bela, fria, lisa e branca como mármore Carrara) ficou com receio de entrar na sala, pois poderia tomar uma bronca ou levar uma daquelas estatuetas feitas com pedra-sabão bem no meio da fuça. Roberto às vezes atirava coisas. Todos temos lá as nossas fraquezas, vocês haverão de concordar comigo. Eu, por exemplo, escrevo para a realidade fugir de mim. Uma completa perda de tempo. A esposa foi avisada do surto raivoso e chegou à clínica mais rápido que um cuspe.

Quando entraram no consultório, Roberto já tinha cessado a quebradeira. Parecia um cavalo velho, exausto, suado por espatifar quinquilharias contra as paredes. Nem o embolorado diploma de formatura escapou do vandalismo. Estava sentado na cadeira giratória, as ideias girando, aturdido, tomado de um semblante demencial que fez todo mundo gelar. Por fim, debruçou o corpanzil para frente e apoiou a calva sobre o braço direito. Roberto chorava? Ninguém suspeitaria uma fraqueza daquelas.

“— O que foi, Beto?”, perguntou a esposa, tão condoída quanto uma cadela que acaba de devorar a própria cria.

“— Tô ferrado. Tô morrendo”, balbuciou, espirrando sobre o receituário gotículas de suor mescladas com lágrimas e perdigotos.

Roberto estava pálido, desanimado, o jaleco ensopado de tanto brutalizar contra os objetos inanimados. A mulher avistou sobre a mesa o laudo que atestava haver sim um ser irrequieto e independente, que tinha o tamanho de um punho fechado, alimentando-se de neurônios e de substância cinzenta, crescendo, ficando forte e parecido com o pai, socando a cachola dele de dentro pra fora. Aquela coisa almejava ser parida pelas têmporas. Tumores são pretensiosos, sonham em ser autossuficientes, mas, homem nenhum os aplaude, os perdoa, mesmo quando brotam nas entranhas dos crápulas mais repulsivos.

“— Coitado. Logo ele que já operou tanta gente…”, comentou a secretária, que se parecia à beça com a Vênus de Milo, só que possuía braços. Senti-me abarcado por eles numa longínqua ilha do Mar Egeu. Juro. Acreditem.

Roberto destruiu o consultório por pura raiva. Sabia que os seus dias eram favas contadas. Era ateu até o tutano, mas se sentiu injustiçado por Deus, ora, quem diria, vejam só. Se o encontrasse pela frente, não sabia do que seria capaz, quem sabe, dizer poucas e boas, derrubá-lo da nuvem, destituí-lo do trono, provocando enfim o fim das religiões, do fanatismo e das guerras. Pensam-se absurdos quando a morte lambe os calcanhares. De tão claras, as ideias podem parecer devaneios.

Condoídos com o cenário miserável, os pacientes adentraram o consultório para se aglomerarem ao redor dele. Roberto parecia um ímã, um naco de carne adocicada grudada de formigas. Nenhum homem era uma ilha? Roberto se parecia com uma delas, cercado por um mar de gente. Temperou a própria vida assim: às vezes, doce; às vezes, amargo. Um cirurgião extraordinário. Um homem ordinário assim como eu, vocês e a belíssima secretária com braços alvos e esguios que mais se parecia com um monumento em tributo à beleza, ao amor e ao sexo. Sim. Lamento informar que o Roberto morreu no final. Mais rápido que um cuspe.