O desafio de achar graça na própria vida e deixar de acreditar que a do outro é melhor

O desafio de achar graça na própria vida e deixar de acreditar que a do outro é melhor

Você provavelmente já passou por isto: rolando a timeline de alguma rede social, eis que surge um vídeo sobre tecnologia capaz de arrancar um olhar incrédulo. O mais recente foi o de uma discreta pulseira projetando a imagem de um celular no braço de alguém. Meu Deus, a pulseira deve ter 10 milímetros de espessura. Como as coisas mudam rápido! Não faz muito tempo, felizes e modernos, adquiríamos um celular multifunção — ligava e servia como arma — cuidadosos para que ele não ferisse alguém com seu pesado esplendor.

Olho ao redor e me dou conta de que, nos últimos três anos, poucas coisas permaneceram: desde eletroeletrônicos, passando por maquiagens, roupa de cama e sapatos. Nem o maldito piso é mais o mesmo.

Minha cara, por outro lado, permanece firme e forte. Pode-se trocar de roupa, bar, livro de cabeceira, telefone celular, marca de rímel, restaurante favorito, ou qualquer outra amenidade à volta. Mas, por baixo de tanta novidade, há aquela mesma cara que — salvo por intervenções plásticas e algumas rugas que vez ou outra despontam — continua a mesma. Conhecemos até demais aquele ser do outro lado do espelho, suas fantasias e limitações. Sabemos de cor suas angústias e manias. Esse excesso de intimidade pode ajudar a tomar antipatia do cotidiano, já que o mundo muda freneticamente, mas nós, reles humanos, geralmente requeremos tempo para galgar grandes mudanças. É fácil demais acostumar com a própria vida, e, como se sabe, coisa repetida demais tende a ficar meio sem sal.

Para fugir dessa empreitada de lidar consigo mesmo 24 horas por dia, é natural a comparação com outras caras por aí. A tecnologia ajuda a neurose e, com poucos cliques, dá para saber a vida alheia em toda sua aparente plenitude paradisíaca.

A cena se complica um pouco com a imersão na vida das celebridades, já que o lucrativo radar dos paparazzi vende glamour até mesmo diante dos barracos mais esquisitos. E nossa vida, quase sempre regular, meio enlameada e, vez ou outra — apenas vez ou outra! — repleta de maravilhas, fica meio apequenada. A sensação é de se estar perdendo algo muito legal, um grande evento que tenha espaço para toda a gente, menos para nós.

Fernando Pessoa foi um mestre em constatar as linhas tortas da vida. Ora com acidez, ora com doçura, o autor sempre soube entender que a vida se passa mesmo é entre trancos, barrancos e vaivéns que escoam pelo ardil do tempo. Do alto do azedume que vez ou outra o afligia, deixou que seu heterônimo mais desencantado escrevesse: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…”. O poema, que retrata com ceticismo as vidas tortas que se vendem retas, não por acaso se chama “Poema em Linha Reta”. Não poderia ser mais torto.

Pessoa sabia o que era se sentir como um sapo num mundo de príncipes, mas também tinha certeza de que a sensação não passava de uma armadilha da mente. O mundo de semideuses logo causa enfado e ele brada: “estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”

Com o tempo, percebemos que não há semideuses, isso é uma grande bobagem. Tudo o que existe são pessoas que, em maior ou menor grau, lutam contra suas limitações e procuram extrair o melhor da vida. O maior desafio é conseguir enxergar que felicidade pode residir também na regularidade. É perceber que filme e pipoca podem trazer tanta plenitude quanto se acabar numa balada chique com um copo de champanhe na mão. É possível viajar o mundo em hotéis 5 estrelas e, ainda assim, sentir-se infeliz, enquanto um churrasquinho modesto com cerveja aguada e bons amigos pode render a mais genuína plenitude. Ser feliz depende muito mais do leitor do que da leitura.

“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana/ Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia”, disse Pessoa. Confesso, Pessoa, que a pior infâmia é inventar infâmias que embacem o que há de bom. Que o maior pecado é não se perdoar pelos pecados que já pertencem ao passado, mas que ainda hoje corroem. Que a maior canalhice é não confessar que ouvir a música preferida dentro do carro faz abrir um sorriso e que, se isso não for felicidade pedindo um espacinho, não sei o que mais pode ser. Que não há nada mais vil do que se sabotar tentando comparar que cerca é mais branca, que grama é mais verde, que filho é mais saudável e essas bobagens que a gente inventa para causar reboliço onde não existe…

E que não há nada mais simples do que entender que a felicidade é descomplicada. Quem complica somos nós.