Fere-se mais com as palavras do que com os punhos

Fere-se mais com as palavras do que com os punhos

Era tarde avançada. Chovia. Nos olhos dela, tempestades. Eu me sentia esgotado. Ela parecia devastada, conduzida até ali por uma espécie de força extravagante advinda de outro mundo. Nunca sofri de superstições, então, relevei a pressa de ir embora. Ofereci a ela os ouvidos com esforço legítimo e desprendimento samaritano. Justo eu que, de santo, só padecia daquele olhar estático e melancólico. Cara de paisagem era o que diziam.

Parecia mais uma daquelas mulheres aturdidas que eu vira nos filmes de Ingmar Bergman. Não. Ela não era a personagem histérica de uma matinê do Cinesala. Se eu pudesse, para alegrá-la, teria oferecido pipoca com guaraná. Bebemos água. Ela aceitou a bala de café. Eu adorava café, mas não suportava os melodramas. Fazer o quê? O que seria, afinal, um homem ocupado demais com a angústia e com os dilemas existenciais, um sujeito desprovido da providencial fé que removia montanhas? Só mais uma pedra no sapato do bom e velho Deus, eu suponho. Também estou sendo melodramático? Perdão. Prossigamos a história.

Ela contou que nascera de parto normal. Além dos piolhos, nenhuma moléstia grave na infância. Cartão de vacinas, impecável. A primeira menstruação. O primeiro namorado. O primeiro molestamento protagonizado pelo pai. A fuga de casa. A gravidez inesperada. O aborto feito com agulhas de crochê. O dano. A extirpação do útero, às pressas, por um bando de médicos adestrados. Uma vida ordinária como tantas outras, permeada de encontros e desencontros. Um homem. Uma paixão. Um equívoco. As palavras sendo desferidas como murros. Ferir-se-ia bem menos com os próprios punhos. Adeus. Passar bem. Foi péssimo enquanto durou.

Mudança. O apartamento. Os gatos. O entrosamento perfeito com a solidão. Pilhas de livros devorados. Correntezas de jazz. Adorava Nina Simone. Aliás, ela se parecia à beça com a Nina Simone. Uma mulher negra adentrada nos cinquenta. Os calores. Os rubores. Os rumores não confirmados de que haveria um novo amor pintando na área. A vagina seca. Os olhos encharcados. Queria entender por que chorava tanto sem motivos.

Conversamos sobre música. Ela tocava piano; eu, guitarra. Mesmo calvo, eu imitava o Elvis. O sonho não tinha morrido. Ela contou que todas as noites as noites gozava durante o sono REM. No ambiente onírico, tudo era divino e maravilhoso. Não foi o Caetano Veloso quem cantou isso? Indiquei uns rótulos chilenos incríveis. Comentamos rapidamente a grave situação econômica por que passava o país. Fomos unânimes em concluir que éramos uma nação com prioridades fajutas.

Tinha parado de chover. Nos olhos dela, trégua. Seria a bonança? Il gran finale: tirei da gaveta uma caixa de medicamentos. Peguei a caneta e escrevi abaixo da tarja vermelha: Pílulas de Felicidade. Ela riu. Enquanto eu prescrevia, pactuamos o seguinte: menos açúcar, menos frituras, mais cinema, mais Nina Simone, corridas pelo parque da cidade, doses diárias de cabernet sauvignon e, se porventura pintasse um affair, que fizesse sexo sem tanta ponderação assim.

Passaram-se trinta dias. Uma balzaquiana negra, risonha e viçosa adentrou no consultório e me ofertou um livro. Era a biografia não autorizada de John Lennon. De alguma forma, ela soube que eu amava mais os Beatles do que os Rolling Stones.

Ilustração: René Magritte