Estou correndo atrás de um sonho, mas ele corre rápido pra cacete

Estou correndo atrás de um sonho, mas ele corre rápido pra cacete

Felipe sonhava em construir foguetes para a NASA. Imaginem só, um brasileiro na agência espacial norte-americana. Dizem que já existe um por lá fazendo feijoada, tocando pagode, pensando em esquemas. Coisas de Brasil. Felipinho tinha talento nato para fugas homéricas do planeta. Com a cabeça no mundo da lua, hoje ele bate o polegar em beira de estrada, pede carona para qualquer pessoa que veja, vai para qualquer lugar que seja, desde que siga em frente. Para onde o nariz aponta qualquer lugar serve. Sua mente solitária é confusa, ferve.

Rebert sofria excesso de verve. Sonhava em ser mais famoso do que Jesus Cristo e os Quatro Garotos de Liverpool juntos. Um escândalo digno de se espatifar discos de vinil na cara dele em praça pública. Convertido ao mais completo ateísmo e abissal anonimato, ele carimba (com toda descompostura, é bom que se diga) alvarás na secretaria municipal de códigos de postura. Ganhou notoriedade entre os despachantes por cobrar cafezinhos para liberação das licenças. O sonho não somente acabou, como Rebert se transformou numa espécie de pedra rolante, a passar por cima de tudo e de todos, inclusive da lei vigente e do seu extinto entusiasmo adolescente.

Julinha sempre foi uma graça. Matava a todos de rir. Sonhava em se tornar uma proeminente cirurgiã plástica, a fim de consertar as barrigas proeminentes das mulheres da família. Atualmente, cozinha numa casa de família, sem carteira assinada, sem direitos trabalhistas, e ainda por cima tem que ouvir do marido — um porco chauvinista — que ela precisa dar um jeito na barriga, levantar os peitões, operar o períneo, fazer exame de prevenção anual e praticar sexo anal sempre que ele tiver vontade. “— Casou pra quê, neguinha?”, ele insiste sem economizar no esmero de grosserias. Se tivesse mais coragem, se soubesse manejar um bisturi como faz com a tesoura da penteadeira, cortá-lo-ia bem no pescoço, no grosso pulsar da veia.

Carlos Wilson possuía gestos suaves, quase ninguém entendia. Ele sonhava em ser mulher. Desde a infância (a questão era de nascença), sofria de um sério dilema de gênero: tinha uma fêmea pelejando dentro do seu corpo masculino. Muita gente dizia que era só frescura do menino, que tudo não passava de fricotes do sujeito, que lhe faltava uma bela de uma taca para dar àquela ambiguidade um jeito. CW foi parar nos anúncios de Utilidade Pública das rádios locais: sumiu do mapa. Fugiu de casa, mas não tinha dinheiro para viajar para a Tailândia, a fim de mudar de país, de ares e de sexo. Então, enforcou-se com a própria trança no vão suspenso do edifício anexo.

Valquíria era um poço de fantasia. Tinha sonhos démodé, como casar-se virgem, ter cinco filhos, viver feliz para sempre com o homem amado. Um dia, mudou-se uma tal de Maria para a casa ao lado. Foi o fim do matrimônio. Todo sábado, pelo microfone da igreja, ela testemunha para o auditório lotado que o suposto príncipe que aparecera a galopar num cavalo alado, não era outra pessoa senão o próprio demônio. Enquanto aspirantes a pastor passam a sacolinha, um homem cego que voltou a enxergar toca o harmônio.

Zecarlos sempre fora o mais sonhador de todos os sonhadores dessa joça que estou a escrever, pois sonhava, não apenas por si, mas pelo resto da humanidade. Aquelas coisas de paz mundial, de fim da opressão, de justiça social, de distribuição da renda, love and peace e outros delírios que carregava desde 1968. As pessoas rotulavam-no como um político de esquerda, mesmo que ele não fosse filiado a nenhum partido, senão ao coração partido de que cantava Cazuza. Portanto, tinha um altruísmo que poucos compreendiam. Era gentil demais, constrangedor demais. Duvidam dele. Desconfiavam que ele possuísse interesses escusos por trás daquela sanha de justiça. Ora, ninguém era capaz de amar ao próximo daquele jeito. Zecarlos não era santo (já fora acusado de ter alma feminina e um pacto com o cão). Ele continua a correr atrás do sonho de um dia vivermos todos em paz, como irmãos.

Paulo Laranja nunca sonhou com porra nenhuma. Nada que merecesse ser ressalvado aqui nesse texto, e ponto final. Aplacado por um ceticismo revoltante (de arrancar santos-de-barro do oco), nos incontáveis meses de vida que os médicos lhe atestaram (afinal, arrancaram-lhe cerca de sete metros e meio de tripas, e nem assim foram capazes de fazer nele um coração), contenta-se em escrever crônicas semanais para uma revista literária (a menos lida no seio familiar e no seu vasto círculo de ex-amigos). Ele se ocupa em enterrar esperanças. PL teve o disparate de batizar a sua coluna semanal como Cemitério de Sonhos. Vai ser desagradável assim lá em casa.

Ilustração: Ben Zank