Eu devia estar contente por você me amar

Eu devia estar contente por você me amar

Eu devia estar contente. Abri o envelope e li as letras garrafais: “Negativo”. Pow! Abri um tinto chileno. Chegou outra carta essa manhã. Ora, com tanta falta de tempo, com tanta informação nas nuvens, quem se presta a enviar cartas? Perguntei se ela ainda me amava ou se já estava farta, e ela fez assim, com o dedo polegar levantado entre as cobertas, apontado para cima: “Positivo”. Aquilo era alvissareiro. As crianças vieram para o feriado prolongado. Desta vez, a melancolia foi curta.

Eu devia estar contente. As mulheres no Brasil não usam burca. Me amarro numa nuca. A moça da telejornal está mais linda a cada previsão meteorológica. Com ela, o clima do relacionamento seria para sempre bom? Começou o racionamento de mágoas em São Paulo. Terminou o horário eleitoral gratuito. Paguei a conta o pet shop. A cadelinha deitada sobre o tapete observa-me com idolatria, abana o rabo, nunca me deixa só. Espero, um dia, retribuir tanto amor. Será que ela também é deus? Será que existe um céu só para cães e ateus? Adeus, moça de voz robótica! Você perdeu: cancelei a porcaria da TV por assinatura.

Eu devia estar contente. A crise financeira está mais amena que a crise dos 50 anos — isso os indicadores econômicos não mostram. Dizem que carência é pior que carestia. Não tenho pretensões político-partidárias. Não quero tomar o poder, mas aceitaria uma caneca de chope. Perdi de lavada a eleição para síndico do prédio. A minha maior pretensão agora é encontrar o controle remoto da televisão para desligar o meu tédio. Consigo correr cinco quilômetros sem sentir aquela dor-de-veado que a tantos perturba. Eu não faço parte da turba que apoia o Bolsonaro, que apoia a volta dos militares aos filme de guerra, que apoia a tortura dos ouvidos com música de péssima qualidade. Não sou santo, mas tenho mau gosto: confesso que, além de afogar formigas com cuspes de creme dental na pia do banheiro, mandei que minha amada se ajoelhasse no tapete e não rezasse. Ela acedeu com fé e predicado, fato este que me isenta de castigo e pecado.

Eu devia estar contente. Não é o que vocês estão pensando: eu não me escravizo por dinheiro, eu gosto de trabalhar para esquecer que estou vivo. Voltou a chover na cidade. No século passado, na minha idade, eu já teria morrido de sífilis ou de tuberculose. Penso que nasci no tempo certo, embora preferisse ter vivido a juventude na efervescência dos anos 1960. Por falar nisso, acho que vou tomar um antiácido e aproveitar a viagem. Azar o meu não ter morrido aos vinte e sete, como Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison. Pelo que li, até onde sei, de acordo com o que diz a bula, a overdose de sais-de-fruta não mata ninguém.

Eu devia estar contente, pois a jabuticabeira está carregada e os passarinhos ainda não aterrissaram para rivalizar comigo. Meus dentes estão endireitando; minhas convicções religiosas, não. Cresci ouvindo o que havia de melhor na música popular brasileira. Não alimento o sonho de me mudar do Brasil. Não me considero pior do que um lorde inglês. Não lavaria latrinas para os estadunidenses. Ora, eu ajudo a consertar essa joça de país trabalhando em português. Que se dane o IDH pífio.

Eu devia estar contente. Meus pais estão vivos. Elvis não morreu. Vi Paul McCartney cantar no Rio. Aliás, o riso de janeiro da Catherine Deneuve continua lindo. Tenho pouquíssimos amigos, contudo, eles funcionam muito bem nos piores momentos. Não rezo antes de dormir, mas leio poesia com uma fé impressionante.

Eu devia estar contente. Não sei como explicar. Acho que isso pode ser um jeito diferente de amar. O que você acha?