Eu não sei viver de outro jeito, a não ser desse jeito

Eu não sei viver de outro jeito, a não ser desse jeito

Voilá, mundo cruel! Eu te amo. Eu te odeio. Essa bipolaridade é de matar, mas acontece que eu não sei viver de outro jeito, a não ser desse jeito. Não te sintas tão seguro assim. Não pretendo saltar de uma ponte. Aliás, desde que me tornei adulto, as pontes é que andam a saltar de mim. Tá uma febre. Os dilemas são tão intoleráveis que nem vergalhões e concreto sustentam.

E por falar em dureza, carece que eu te diga a verdade, ainda que desabemos juntos: a cada dia, sonho em me vingar de ti. Lorotas históricas dos astronautas — seriam os deuses histéricos? — revelaram que o Planeta Terra se parece com a bola 2, uma esfera azulada se a espiamos pela escotilha de um foguete, a milhares de quilômetros céu acima.

A vida é uma sinuca de bico? Estou desatualizado quanto aos meios de transporte? Aeronaves não possuem escotilhas? Ora e essa! Não te prendas aos detalhes, mundo cruel. Não sei bem ao certo se são os mares ou se são os ares que conferem ao globo tal coloração azulada quando vista do espaço. Azul cor-de-gangrena, se é que me entendes — sim, trago sempre a tiracolo um punhado de palavras desagradáveis e muito mau humor; é que o clima anda sujeito a tempestades na minha mente.

Não é privilégio nosso, mundo cruel: os astronautas e as estrelas também surtam. Algumas caem do céu. Da minha parte, suspeito que este fenômeno ótico ocorra por conta dos efeitos da gravidade zero sobre o pudim encefálico, dentro de uma cabine hermeticamente fechada. Odeio mais a mim do que a ti. Explico-te: do lado de fora de qualquer astronave, olhando aqui de baixo, pisando em titica de cachorro, com os pés fincados no chão, feito um girassol, posso girar o pescoço e te assegurar que a gravidade da situação é máxima. Usei o pronome possessivo de propósito, pois estamos tão irmanados no caos quanto unha e carne. És tu, contudo, quem me devora o tempo inteiro. Assim caminha a carnificina. Sempre.

Espero que estejas compreendendo bem essa reflexão prolixa e neurótica. Caso contrário, desenharei para ti: a Terra é azul como um sorriso; tua cor, em contrapartida, é indescritível como qualquer equívoco. Pareço mais áspero que o habitual? Não. Nietzsche e Schopenhauer são inocentes, não levam culpa no cartório. Abaixo os melodramas, por obséquio. Em matéria de crueldade, tudo o que sei de mais danoso e triste aprendi na prática contigo, ao longo dos últimos 50 anos.

O chão treme. Os vulcões cospem. Os rios sangram. Os tornados dançam. Não culpo os fenômenos naturais por tanta desgraceira. A maior tragédia de todas é uma humanidade que se revela demasiadamente desumana. Por isso mesmo te amo nalguma medida mínima, ainda que sob os escombros. Por isso mesmo te odeio, superlativamente, apesar de mim. Como eu já disse, estamos conluiados até o tutano. Até que a lama ou a lava nos redima. A ti pareço muito descompensado nesta manhã? Desejas reclamar a alguma instância superior? A Deus, mundo cruel.