Tudo que é sólido desmancha no ar?

Tudo que é sólido desmancha no ar?

Todo mundo sabe que esse alvoroço da população que avassala as autoridades começou em protesto a um acréscimo de 20 centavos no preço dos passes do transporte urbano. Todo mundo sabe, mas ninguém acredita. Ninguém dá conta de entender como uma merreca de 20 centavos possa causar tamanha revolta e euforia numa população que sempre foi tratada como frouxa e sem noção. Pode ser que continue a ser tratada como sem noção, mas como frouxa, nunca mais.

Os políticos ficaram atônitos diante de tanto furor, esperando que os comentaristas pudessem apresentar alguma explicação para o fato inesperado. Entraram em campo primeiramente os marqueteiros, como se a revolta fosse decorrente de algum entrave no setor de oferta e demanda. Vieram depois os cronistas, os articulistas, os cientistas sociais, os analistas políticos, os palpiteiros ocasionais e toda sorte de modeladores de acontecimentos e formadores de opinião.

Uns alegaram dívidas históricas do país não resgatada para com a população, ou mesmo uma sequência de desmandos que vem se alastrando por séculos até saturar o fígado da população e virar essa indigestão encarniçada. Outros alegaram problemas de conjuntura, com a inflação subtraindo o poder de compra da classe média e deixando todo mundo irado. Sentimento esse potencializado pela corrupção do poder constituído, impunidade de criminosos e gastos supérfluos, enquanto os serviços públicos, como educação, saúde e segurança se degringolam dia a após dia nos quatro cantos do país.

Institutos de pesquisas também saíram a campo para tirar uma súmula dos motivos supostamente difusos que empurraram a população para o levante. Constataram, dentre outras, que a maioria que reivindica melhorias no transporte público sequer utiliza o transporte coletivo. É como se a classe média tradicional, tida como individualista e alienada, de repente, mudasse de atitude e começasse a se solidarizar com o pessoal mais abaixo da escala social e até liderasse esse movimento fenomenal em favor dos irmãos menos favorecidos. Em favor daqueles que dependem do capenga e sucateado transporte público para exercer o sagrado direito de ir, vir ou mesmo permanecer, depois de ter ido ou vindo.

Suponhamos, já que constatação fenomenológica demonstrável ninguém conseguiu ainda, suponhamos que toda essa comoção tenha sido mesmo pela merreca de 20 centavos de acréscimo nos passes. E não pelo suposto fosso histórico e conjuntural que o país vive entre o que é de fato e o que poderia ser. Alguém diria que essa possibilidade é contraditória em termo, pois a pesquisa, como já foi dito, demonstra que as lideranças identificadas são de uma classe média estabelecida que não é usuária de transporte público. Mas a explicação pode estar exatamente neste simulacro de contradição.

Nada mudou tão espetacularmente. A classe média continua não solidária e individualista como sempre. Continua com insufilme na janela de casa, nas portas do carro, no vidro dos óculos, na pele. Tem insufilme até na alma. Essa coisa de defender direitos dos outros não seria uma recaída repentina. Mas sim uma fórmula nova de exercer o seu velho individualismo e a carência de empatia pelo sofrimento alheio.

Ocorre que com o acesso de milhões de pessoa ao consumo, a chamada classe média emergente vem ocupando os espaços que antes eram ocupados pela classe média tradicional. Os antigos da classe média são um pessoal meio isolado, circunspecto, de gestos sóbrios que têm muita dificuldade para rir. Já os emergentes, que trazem os hábitos da pobreza em que viviam, é um pessoal turbulento, de gestos espalhafatosos, que ri e até gargalham em qualquer lugar, por motivo à-toa, causando inveja nos tradicionais. É um pessoal ainda solidário, que se visita, faz festas por qualquer motivo. Esse pessoal incomoda: está ocupando os espaços antes ocupados pela velha classe média. Os bares, os restaurantes, as escolas, os clubes, as igrejas. Tudo está cheio de sua alegria ruidosa.

As ruas, então, já nem cabem os carros da classe média chegante, e ninguém mais consegue exercer o direito à acessibilidade condignamente. Ai é que está o ponto fulcral de todo o reboliço. O motivo pelo qual pessoas que nunca andaram de ônibus vêm à rua liderando um movimento para que os passes não subam a merreca de 20 centavos. Vem a público reivindicar a melhoria do sistema de transporte coletivo. Não que a classe média tradicional queira de uma hora para outra aderir ao transporte público. O que ela quer, na verdade, é que a classe média emergente volte para o seu tradicional sistema de transporte e deixe as ruas livres e desembaraçadas para os carrões da classe média tradicional circular com folga e desenvoltura. Não apenas como meio de transporte eficiente, mas como vitrine expositora da própria figura.

Essa hipótese ficou bastante clara quando o pessoal do movimento Passe-Livre, constituído pela tradicional classe média, que puxou o levante em São Paulo, veio a público dizer que suas postulações já estavam sendo atendidas e que não iria convocar novas passeatas. As reivindicações atendidas são exatamente a não subida do preço do passe e a promessa de melhoria do sistema viário. Parece que todo o reboliço foi mesmo motivado pelos 20 centavinhos. Ainda que por linhas tortas. Os outros motivos como saúde, educação, segurança, gastos supérfluos, corrupção e tal foram adicionados a posteriori, pela argumentação dos moldadores de eventos.

Deus nos livre de que essa hipótese esteja correta. Porque, se estiver, nós seríamos mesmo uma nação de quinta. Uma nação que demora a acordar, e quando acorda, é por motivo torpe!  Uma nação em que, como diria Karl Marx: Tudo que é sólido desmancha no ar.