Hannah Arendt: a filósofa como poeta

Hannah Arendt é mais conhecida como pensadora, analista privilegiada do totalitarismo, e, infelizmente, como a amante judia de Heidegger (“filósofo para filósofos”). Mas era também poeta

A faceta da judia Hannah Arendt filósofa quase militante — dotada de uma coragem intelectual excepcional, mesmo quando enfrentava o reducionismo e o vitimismo do establishment judaico — é por demais conhecida. Nascida em 1906 e falecida em 1975, é frequentemente citada em livros e reportagens e artigos de jornais de todo o mundo tal a vitalidade de suas ideias. Afirma-se que algumas de suas ideias são insight não desenvolvidos — e seu livro clássico, “Origens do Totalitarismo”, mereceu críticas de vários autores, como os judeus Bruno Bettelheim, psicanalista, e Raul Hilberg, historiador. Nos últimos tempos, nos quais dinheiro compra até amor verdadeiro, tem sido mencionada, com constância excessiva, por sua paixão pelo filósofo Martin Heidegger. Num de seus livros, “Homens em Tempos Sombrios” (Companhia das Letras, 256 páginas, tradução de Denise Bottmann), escreveu um ensaio sobre Heidegger apresentando-o como uma espécie de “último romântico”. Trata-se de uma “defesa” relativamente sutil, porque Heidegger encantou-se pelas “ideias” do nazista Adolf Hitler. Mas há uma Hannah Arendt pouco conhecida e nada divulgada — a poeta.

Como poeta, Hannah Arendt não era uma gigante, ao contrário dos seus adorados Rilke e Auden, mas não era medíocre. As poesias publicadas nesta edição foram extraídas da melhor biografia de Arendt em português: “Hannah Arendt — Por Amor ao Mundo” (Editora Relume-Dumará, 492 páginas), de Elizabeth Young-Bruehl. A tradução é de Antônio Trânsito (revisada por Ari Roitman e revisão técnica de Eduardo Jardim de Moraes). Evidentemente, a filósofa sabia que não era uma poeta do porte de Goethe, Heine, Rilke, Auden e T. S. Eliot, mas as poesias, ainda que por vezes exibam certa secura e a autora mostre apenas razoável capacidade no manejo das palavras, têm certa qualidade, sobretudo por seu caráter, digamos, histórico e filosófico. Ela escreveu, por exemplo, uma poesia sobre Walter Benjamin. Alguns poemas, é verdade, parecem ter sido escritos por uma colegial, mas, aqui e ali, a força filosófica do pensamento de Arendt injeta qualidade e vitalidade onde falta poesia. “A tristeza é como uma luz que arde no coração/A escuridão é uma brasa que vasculha nossa noite” — um dos bons momentos de sua poesia.

Arendt amava poesia, inclusive as do “stalinista” alemão Beltolt Brecht, que perdoava, como a Heidegger, pelo seu enorme talento. Ela lia o escritor americano William Faulkner, por exemplo, e adorava uma de suas frases (Arendt adorava citações, como Karl Marx): “O passado nunca está morto, e nem mesmo é passado”. No livro, embora não tenha a ver com o assunto exposto aqui, que é poesia, há um trecho surpreendente, uma revelação de Arendt ao seu admirado Jaspers: “A tentativa malsucedida de [de Theodor W. Adordo] de colaboração [com o nazismo] em 1933 foi exposta no jornal estudantil de Frankfurt, ‘Discus’. Ele respondeu com uma carta indescritivelmente lamentável, que não obstante deixou uma forte impressão nos alemães. A verdadeira infâmia do assunto foi que ele, meio-judeu (por lei), deu esse passo sem informar seus amigos. Ele tivera esperanças de se safar com o nome da família italiana de sua mãe” (aqui se encerra o texto de Arendt; o trecho a seguir, sem aspas, é da biógrafa), Adorno, ao invés do nome mais obviamente judeu de seu pai, Wiesengrund (página 109).