João Cabral de Melo Neto: uma vida só lâmina Arquivo Nacional / Correio da Manhã

João Cabral de Melo Neto: uma vida só lâmina

Está na tradição humana reunir-se diante da palavra, para cultuá-la, para, através dela, cultuar. Para dizê-las ou ouvi-las, para pensar nelas e com elas, através delas, limitados e libertados por elas, pelos seus limites de dizerem tudo o que é e o que somos. Estudamos as palavras ainda crianças, cedo nos familiarizamos com a forma escrita daqueles sons que balbuciávamos com os quais fazíamos o mundo acontecer: comíamos, bebíamos, dizíamos de alegria e tristeza mesmo sem saber o que isso significava: cedo aprendemos a desenhar aqueles sons mágicos: ganhamos, de praxe, um belo dicionário de nossos pais para que a sabedoria do mundo e da vida esteja disponível. Os primeiros sins e nãos, e conhecemos o poder de fazer chorar ou sorrir que as palavras têm. Se servem para proteger, com palavra como pai e mãe, da boca deles virão as primeiras ordens e cerceamentos de liberdade física e moral. Para cada coisa ao redor, um nome; o que não está presente, pela palavra é evocado com intimidade, seja para dizer “grão de terra” ou “Deus”. E quanto mais vida há, mais linguagem aparece, e falar muito, nos bebês, é sempre agouro de inteligência: no princípio era o verbo. Para o filósofo alemão Martin Heidegger, em sua obra “Ser e tempo”, a linguagem é a casa do ser.

Precisamos voltar a ler literatura em voz alta, já que a literatura é a potência significativa, simbólica, social, cultural e filosófica máxima da linguagem. Vocalizados, os recursos estéticos de significação revelam mais fortemente o que há, mas revela principalmente o que não há, já que o silêncio grita em nós sem fuga.

Os saraus, os clubes de leitura precisam voltar. Os duelos, as competições de declamação, essa celebração que tirava a leitura do gabinete e a compartilhava com a cultura das ruas era uma espécie de streaptease do poder do verbo, quando a inflexão do contador de histórias causava medo, suspense, curiosidade; ou quando os poemas, nas celebrações de adultos, calavam os que bebiam e mergulhavam todos em reflexões mais profundas que as amenidades dos quitutes e dos drinks, e também revela da personalidade de quem declamou, pela forma de dizer e pelo poema dito. A cultura física e sonora em torno do objeto livro precisa voltar.

Talvez seja preferível o termo vocalização ao termo declamação, muito restrito ao gênero lírico, ao dizer de poemas. Por mais vocalização de Poemas, Romances, Crônicas, Contos e Novelas. Devemos nos unir, os cada vez mais escassos homens de letras, se é que isso existe de fato.

A literatura tem um modo especial de ser lida, e isso se revela muito em voz alta. Não é como ler uma sentença, uma notícia, obituário. Não. O objetivo é fazer com que a leitura, fria e calculada, tenha a intenção de emocionar aquele que ouve, mesmo que o poeta não tenha falado em emoção ao compor o seu poema.

No meu vício de professor, escritor e crítico, na maior parte das vezes a intenção da minha vocalização é didática, deleitosa, e no intento de aperfeiçoar-me e aperfeiçoar a escuta do ouvinte/receptor/leitor coletivo: exercitar a vocalização e ressaltar a beleza do texto escrito como um objetivo que transcende o da informação e do registro de dados, orientações de como exercer uma atividade, ou registrar para o hoje e amanhã os fatos relevantes do tempo. Os conceitos talvez nos civilizem, mas é a literatura que nos humaniza.

Quando se lê literatura em voz alta, quando se faz o exercício da declamação e/ou da vocalização, assume-se uma autoria do texto, portanto é ato de uma responsabilidade especial.

A retórica é um ramo da arte, da filosofia e dos saberes clássicos. Uma ciência. É o estudo da forma não de convencer, mas de articular os argumentos, levando em conta a recepção da plateia com relação à sua exposição, e de se as palavras, frases, ordem de colocação e entonação serão as adequadas. Não se trata de ludibrio, como pensam alguns que não tem retórica: a retórica não mente, mas é astuta em tirar das verdades os melhores elementos para o convencimento do outro. Isso não cabe apenas ao que se diz, à escolha das palavras: é também questão do modo, do tempo, o peso ou leveza dado a este ou àquele termo; o cuidado com um adjetivo, a velocidade que indica o desejo de expressar contradição ou paralelismo, a isolação de um termo, por uma pausa grave, denotará a relevância para fazer crer ou descrer. Tudo isso e mais entram no jogo da leitura em voz alta de um texto literário. É um ato polissêmico: literário, dramático, retórico, linguístico e performático.

Os militantes dos estudos de recepção e efeito estético tem muitos adeptos desavisados que se acham “up to date”, e são tão antigos quanto os contemporâneos de Homero. Até mesmo Aristóteles, quando fala da catarse que deve ser liberada pelo público, e do sentimento de terror e piedade que a tragédia deve causar, adianta-nos muito no entendimento do que são estudos da recepção e teorias do efeito estético, duas áreas importantes, pródigas e prestigiadas dentro da ciência da literatura, da teoria, crítica e estudos comparados, culturais, nacionais e transnacionais ou transregionais, bem como nos domínios da crítica sociológica, temática, psicanalítica, dialógica, estilística, estrutural, formalista, e da nova corrente dos estudos decoloniais, e da novíssima escola eco-crítica.

Não basta pensar em dizer o bem, o belo e o verdadeiro: precisa-se dizer essas três coisas de modo a serem entendidas, sentidas, e fazer com que elas causem algo no ouvinte. Um poema não é uma placa com uma informação objetiva do sentido para o qual se deve virar, nem um manual médico de como manusear o bisturi no delicado, sagrado, fatal e vital ato cirúrgico. Um poema é a mais elaborada modalidade de construção verbal que o homem produziu, e não tem uma função prática. Nessa aparente inutilidade está a sua essencialidade.

Dizer bem um poema é dizer bem da sua obra, sua ourivesaria, seu trabalho lapidar do poeta que constrói a beleza e esconde o esforço. Lendo o poema em voz alta nós o fazemos acontecer em outro nível. A vocalização não o melhora, nem o piora, mas dá importância ao leitor/ouvinte não profissional, porém atento e interessado, que também tem direito à beleza verbal. Vocalizá-lo é sobretudo fazê-lo funcionar. Literatura é uma atividade, uma prática da qual resulta um produto: o livro. Ora, ela precisa funcionar, e para isso precisa ser bem usada. De nada adianta a melhor massa nas mãos do chefe mediano: o prato não atingirá o sabor potencial de sua massa. O poema mal lido não se torna ruim, mas funciona menos em seu poder, tivesse sido bem-dito teria tocado mais, emocionado mais, movimentado mais, criado mais mundos verbais, teria feito as palavras serem o que são de forma tão potente que, de tanto serem elas mesmas, seriam algo que jamais imaginamos, nós, que as usamos.

O grande astro disso tudo, o poeta, seria um alquimista que inventou o que vimos e ouvimos nas palavras que sempre nos pareceram banais, com as quais sempre lidamos. Luminosa alquimia, transformar chumbo em ouro, para o poeta, é mostrar o ouro precioso que sempre houve na palavra corriqueira de chumbo.

Vocalizar literatura é ampliar algo que já é por demais imenso, por isso é um evento, uma celebração para quem faz e pra quem recebe. Espíritos mornos não fazem e nem recebem. É coisa de gente que pega fogo, corre risco e tem medo de tudo, mas por esse motivo enfrenta tudo, e foge de todo conforto que estagna e impede o movimento. Quem declama um poema, vocaliza literatura, lança uma bomba no mundo, porque nada ali, depois disso, será o mesmo.

Às vezes, prosas com alto poder estético, entram na leitura oral e revelam capacidade de comoção maior ou igual à de grandes textos em versos.

Comentários, apontamentos sobre história, literatura, teoria e crítica podem entrar nas vocalizações, mas de viés, ressaltando o texto e a beleza de ouvi-los num silêncio que se oferece à palavra de quem escreveu, não à de quem está lendo.

Esse artigo nasceu de um desejo artístico, passional, intelectual, profissional, que é falar de um dos maiores feitos já realizados em língua portuguesa, o poema no qual mais se é possível estender nos comentários que antecederiam a sua leitura integral, na qual os seus versos fossem ditos numa cadência preparada com o hermetismo com o que foi escrito e pensado, a fim de que os ouvintes/leitores tivessem maior apreciação da obra, que sim, é hermética, difícil, de acesso árduo para todos sim, mas feita também para todos os que querem muito e de verdade entender e se emocionar, modificar-se e modificar o ao redor.

Uma vocalização sem orientação prévia não daria conta do texto, e como o objetivo seria divulgar e espalhar a beleza desses versos, este artigo será escrito como se fosse para o público da audição da vocalização, com o essencial de que precisam saber para sorverem, comerem, gozarem, saborearem do poema, pois é pra isso que a arte é feita, pra nos fazer crescer no deleite, no gozo estético.

O texto aqui não tem seu mérito por ser completo e ter dito tudo o que se há para dizer sobre o poema “Uma faca só lâmina”, de João Cabral de Melo Neto. Sua justificativa se dará por ser muito necessário ao leitor não profissional das letras ou não habituado à leitura de poesia, porque se reunir para ler poesia, porque ler Cabral e esse poema, creiamos, são necessários demais.

“Uma faca só lâmina” é o ponto mais alto de sua produção. Não é o seu maior poema, apesar dos “apenas” 348 versos que o perfazem, mas é o sobre o qual mais há a se dizer e que mais condensa suas características de poeta que pensava e construía a linguagem.

Os versos estão distribuídos em nove sessões, indicadas por letras maiúsculas. Na empreitada do seu maior poema vemos três palavras motores (faca, bala e relógio), assimilarem-se às suas nove partes, pois afinal o número 3, 3 vezes dá nove: as três chaves para as nove partes. A engenharia literária aqui é de gênio maior. Ler “Uma faca só lâmina” em voz alta seria uma demonstração fortíssima do quão distante está o discurso poético dos outros discursos humanos, escritos ou orais. A cadência, o ritmo, a junção da mensagem, sonoridade equivale à formatação no papel das quadras: o poema não parece que foi escrito, parece que foi colhido da natureza em sua perfeita imperfeição inquestionável: absolutamente todos os versos (mais de 300), tem a mesma métrica, e parece que nasceram para ser assim, como se não houvesse outro jeito de dizer aquilo que o poema diz.

Temos uma estratégia de composição comparativa entre os três objetos eleitos, mas que são difíceis de descrever, e o sujeito lírico escapa dessa descrição o tempo todo, com ações contraditórias, de negação e afirmação, incoerência e ambiguidade, como num looping que sempre conduz o leitor não ao vazio. Pior: conduz o leitor à ausência. Mas qual ausência, de quê, quem? De certo modo essas perguntas são motores para o poema se estender por quase 350 versos.

João Cabral de Melo Neto é um poeta que existiu para ser poeta: não existiu para mandar mensagens, nem para se engajar em lutas, nem nasceu para ser ídolo das massas, pois natural seria que nem todos atingiriam a linguagem em seu estado mais profundo e sofisticado, como acontece em sua poesia: palavra como tudo, palavra como vida, comovida sem ter comoção; palavra como coisa, como ato, sentimento, alterando até a nossa sintaxe literária, fazendo-nos ver mais brilho nas consoantes do que nas vogais, que nos embalaram sonoricamente desde o nosso inusitado barroco, no século 17.

Vocalizá-lo seria lindo porque ele tem seu alicerce em uma incapacidade comunicativa: Vemos uma impossibilidade de discursar sobre as três coisas eleitas (bala, faca, relógio), e isso é a ponta de lança que justifica, estruturalmente, o uso de muitas metáforas, como tentativas de dizer o indizível: que ausência é essa desperta por esses três objetos? As metáforas conseguem algum êxito, mas nunca a contento, sempre falta algo, o cerne e o centro da ausência nunca são supridos, e voltamos ao ponto de partida depois de boas tentativas, mas insuficientes, e sempre mergulhando, tentando mais fundo. Não se consegue falar da bala, da faca ou do relógio contemplando-os, como se a contemplação, no fazer poético, estivesse criticado aí, com fina ironia feita em via de modus operandi: em contrário de descrever, comparar; em contrário de definir, analisar; em contrário de demonstrar, intuir, e principalmente, em contrário de despi-los em sentido e uso, inflá-los de possibilidades insólitas e angustiantes, que acentuam um vazio anunciado clara e cartesianamente, mas enfrentado num flerte barroco-maneirista, muito sinuoso e escorregadio.

Se os três objetos não são dizíveis para, a partir deles, definirmos a ausência que foi anunciada, outros são convocados, com a missão metafórica cravada em seus uniformes de “coisas que são”, para se buscar, incorretamente, pela comparação, atingir a verbalização da faca, da bala e do relógio, junto da ausência que esse homem leva. Mas no jogo arriscado de escrever para não dizer, ou dizer do indizível, do ausente, esses elementos convocados para metaforizarem, além de se mostrarem frágeis para a missão que lhes foi dada, são vítimas de um desejo do sujeito lírico de se evadir, escapar da missão de descrever os três objetos, porque mesmo que o faça, a ausência de sentido vai permanecer:

“Seja bala, relógio,
Ou a lâmina colérica,
É contudo uma ausência
O que esse homem leva”.

A descrição e definição dos três elementos clarificaria o texto, mas não iluminaria, porque o que está ausente neste homem não está nas coisas, e sim nele: os três objetos sinalizam a ausência, mas não a resolve, tão pouco a preenche.

João Cabral de Melo Neto nasceu sim para ser poeta: taciturno, fechado, não era empolgado com muitas outras atividades que não as silenciosas e meditativas, intelectuais, embora apreciasse, moderadamente, alguma ou outra. A exceção era o amor pelas artes plásticas, touradas, e arquitetura, que amava, pois eram artes maleáveis, tocáveis, pesáveis, pegáveis: objetos. Em seu mais poderoso poema temos três objetos que ele se recusa a apresentar, mas um deles é central, e dá título ao livro-poema: a faca que é só corte, só ferimento e subtração, sangramento. Sendo só lâmina, não tem cabo, nem lado cego ou parte que não perfure, abra a fenda ou sulco.

João Cabral de Melo Neto em 1970 | Foto: Arquivo Nacional / Correio da Manhã

Percebemos algo diferente, mas não incongruente ou incoerente com o projeto do poema: na terceira parte o sujeito lírico se coloca, servilmente, a delinear a faca inusitada, singular, que é só lâmina, mas sem dar ao leitor um só fio de imagem dela. Ele a desenha com palavras pelo que ela tem de cruel e apavorante, pela sua essência filosófica e sua mística física assassina:

“Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

(…)

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)”

Sua ausência de apego ao sentimento abstrato é uma falácia, pois amou as palavras e são elas, as palavras, que nos fazem humanos e diferentes dos outros bichos: amar as palavras, especialmente as concretas (pedra, rio, faca, cadeira, manga) era um jeito de mostrar a quem quisesse ver que o mundo era grande demais em sua grandeza de ser pequeno: João Cabral de Melo Neto queria um mundo maior do que o mundo e palavras maiores que elas mesmas, ainda sendo palavras.

Palavras são fortes e firmes, mas em Cabral são coisas que explodem e movimentam a gente fisicamente: a gente anda com elas; a gente nada com elas; a gente as arremessa feito pedras, a gente as sorve como fruta, raspa-se na areia da vida, das pedras, no implacável tique-taque do relógio.

Mas dois símbolos gritam mais alto em sua poética de coisas, e não de sentires.

As simbologias mais gritantes, cortantes, dolorosas e principalmente cruéis são as das pedras e, como já dissemos, as das facas: as F A C A S.

Em meus esforços interpretativos de sua obra, faço uma breve decantação de um trecho do longo poema, na chave por mim escolhida, que foi a da ausência (várias chaves poderiam ter sido optadas), optei pela ausência perfurante.

“Uma faca só lâmina “, título de um poema-livro de João Cabral de Melo Neto, curto livro e poderoso, com certeza um milagre da linguagem, tão grande como a Monalisa, quanto “Dom Casmurro”.

Do título ao último verso. Do primeiro verso ao derradeiro. Das estrofes perfeitas que parecem nascidas umas para as outras, dos quartetos semelhantes até no desenho da diagramação, da temática difícil das palavras, da ausência delas, que dizem mais do que diriam se estivessem ali; da perdida palavra brotada em outras, da contraposição da sonoridade que se dá por um ruído que fere com a presença da faca, dolorosa, mas a cura única nessa perfuração sanguinária de viver: a faca, que mata a vida, tira a vida, esvazia a vida, preenche a carne com a lâmina e vira osso, vira morte mas preenche a vida sem vida a partir dali. Há uma vida na não vida vinda da faca. E o ferimento fatal deixa de o ser para ser a fenda aberta para o inevitável vazio doo futuro, presente e passado: ausência de sentido. Poderia não existir nada, em vez de algo. Por que existe algo, algo como… gente? Relógio? Bala? Lâmina colérica?

A ausência não é resolvida ou atacada porque em sua poética é ela mesma, silente, a forma densa de vida. Mas se engana quem vê nessa ausência de sentido uma apologia à paralisia do corpo, da mente e do espírito. Estamos falando de uma faca faminta, sedenta,

(…) uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

O que perfura causa ausência, mas cria outra espécie de presença. Daí a obsessão fixa do poema se dar na tríade faca, bala, relógio. De certo modo, nada é ausência, e tudo é só substituição. Em tudo é um dos poemas mais fortes escritos no nosso idioma: bala, relógio, faca são as três palavras do longo poema, e de modo inusitado elas conversam, não delas para com elas apenas, mas através de nós, e não por uma relação de similitude possível de ser útil e presente em cada um de nós.

Elas se dão por três termos ambivalentes:

a) o tempo-relógio nos fatia, organiza e come a vida;

b) a faca-lâmina nos corta, abate para o alimento, retalha a madeira para a edificação do poeta engenheiro e arquiteto da palavra e, sobretudo, mata;

c) a bala-munição que nos perfura, nos protege da selvageria da natureza, na caçada da sobrevivência, para sermos nobres, já que também nos defende do ódio, da covardia e da ganância das guerras e, sobretudo, mata.

Os três — bala, relógio, faca — nos matam, de repente, ou não, mas matam os pangarés do tempo que andam preguiçosos e cansados, na esqualidez magra, desnutrida do sertão da vida, ou do sertão interior de nós, famintos de amor, afeto, solidariedade, de um sol que se faça tecer de todos para todos, a fim de entretender e entreter a todos, ser tenda de todos, e não ser espaço para assistir o tostar de alguns sem tenda em que não entram todos, pois sabemos: só no poema a tenda é pra todos, só lá todos podem laborar pela tenda e, juntos, repousarem todos: fora de um poema e dentro de outros; fora de um poema e dentro da vida severina cabem a educação pela pedra, pela faca, pela caminhada silente, pelas cores de Miró, o feijão que se cata com atenção, já que são poucos os feijões-vocábulos que valem poema em meio a tantas banalidades.

Sertão talvez seja “ser tão” — ser e querer demais, ser tão cheio de desejo que nos afundamos no rio vazio do que não temos. Fora da tenda da manhã, que se tece pelos gritos de galo, é tudo sangue de touro, lentidão de pesadelo, tiro nas lebres de vidro do invisível, Severina vida que se dá no fio que a consome: o sistema é perfeito, e a faca é mesmo só lâmina, da primeira à última linha de suas obras completas: faca é mais que símbolo, e pedra é signo, mas síntese mesmo, é a faca, faca da vida, faca da morte, faca do perfurar, do minar sangue, faca como espada que derruba o touro e faz brotar o sangue no couro preto, fazendo-se desenhar a flor junto com a morte que vem de faca: da qual se morre, nasce-se flor de quem se mata, e nasce porque a faca cavouca a carne do touro como terra fosse, terra é carne que se semeia, da qual se brota, depois, a flor que alimenta olhos, e alimenta, pois está dito no poema que a lógica das facas é outra, e com uma força que colocaria esse poeta, só por isso, num lugar de gênio poderoso demais:

“nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.”

Esses signos matam porque bem ou mal nos tiram tudo, nos deixam ausentes de tudo e de todos, mas todas as facas têm dois lados: ferem e são úteis até; o relógio fatia a vida, mas a organiza; a bala serve para a caça, que alimenta; para a defesa, onde é utensílio; para a justiça que urge diante de injustas e passionais mortes que ela mesma causa: cura e veneno da nossa poção perversa, cruel. Com as balas somos cruéis. Com elas mostramos, em nome de justiça, que não queremos ser cruéis. Do pequeno metal movido a pólvora, a vida se explica. E dói.

A faca, se só é lâmina, não é como bala: sem cabo, sem bainha, sem lado cego, sem ponta evitável: a vida é uma faca só lâmina: corta, tira, dói, mata enquanto nela se toca inevitavelmente. A vida: um desejo. A vida: uma faca só lâmina. Na bala, ela pesa no corpo morto:

“Assim como uma bala
enterrada no corpo
fazendo mais espesso
um dos lados do morto.”

O relógio, implorável, incessante, tira-nos fora gota a gota da vida nos segundos se esvaindo; acelera o instante alegre, faz rastejar o doloroso, e quanto mais ele finda a vida, mais faz doer a quem vai — pelo inesperado — de quem fica com o vazio, que é o seu brinde cor de luto.

Já a faca carrega em si o poder do medo, porque é útil: nada mais poético do que algo tão útil, fatal e temível. Vive-se sem bala, mas não sem faca.

Aí está a genialidade de João Cabral de Melo Neto: não se vive sem ela, e nada mata como ela — nada é tão essencial quanto a vida, e nada é mais mortal do que viver: uma faca só lâmina é a própria vida.

Ela, a faca, fere, e a sua função é ferir, comedida ou não; honrosa ou não; utilitária, ou não; odiosa, ou não; firme, ou não; assertiva, ou acidentalmente; por encomenda da vida — toscamente — nas parteiras que rasgavam os orifícios; ou nas facas que saíam das bainhas imundas de outros sangues para saber de mais outros sangues tão encomendados e pagados, com o mesmo dinheiro que servia para pagar a vinda da vida: dinheiro para pagar a mulher que tira a vida de dentro da vida; ou outro dinheiro, talvez sujo do sangue da vida, agora pro homem que tira o vivo da vida, e encomenda para a morte.

A faca fere, esquarteja, é palavra e gesto, é espera e chegada, desejo e raiva, é tudo que nós bichos somos, e por isso precisamos guardá-la, e nos guardar, nos valores, limites, padrões, dogmas ou, se nada adiantar, em bainhas de aço: as celas.

Nas gentes do sertão, onde a lei é a da natureza, a bainha, mesmo que ela se torne parte, como disse João Cabral de Melo Neto, “de vossa anatomia”, ainda assim há consequências,

“porque nenhuma indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzido à sua boca

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.”

A fome de vida, fome que é o seu motor, é a fome que fere a vida, possibilita-a e a consome, porque, saciando-a, lentamente, matamo-nos, pois tudo é desejo dilatado no tempo.

A palavra é esta mesmo: saciar, não matar: a fome não se mata, mas se sacia, porque a fome a gente resolve comendo, e teremos de novo, a mesma fome. Não matamos a vida, mas saciamos a necessidade de alimentos do corpo e da alma, que se repetirá.

Saciar a fome do corpo é pontual, e sempre se renova essa fome. Fome não é necessidade, é ausência de comida. Um cão também tem fome, que sacia, e depois tem de novo, e sacia. Mas um cão não deseja. Só tem fome. O desejo nos diferencia e nada tem a ver com a fome, porque sempre desejamos e queremos mais, pois aí está a nossa condição eterna de sorridentes incompletos. É claro que o mundo virtual cairia como luvas em mãos para nós: sorrir sem motivo é uma especialidade de quem tem, na ossatura, facas que nos ferem em nosso caminhar, e mesmo assim vendemos receitas de uma vida plena que é impossível.

O desejo é o que movimenta nossa faca “íntima, ou de uso interno”, como disse o poeta, na direção de fazer dela parte de nossa anatomia, de algo que se rebela contra nossos próprios esqueletos, embora se tornem um deles ao serem parte de nossa anatomia, na ausência de bolso ou bainha no qual lhe caiba. Faca-sonho-desejo-carência, como todo desejo ausente — todos são — que nos movimenta.

As facas não são sobre o que temos, mas sobre o que não temos, porque a ausência sôfrega só pode ser preenchida pela faca: ela entra, tira a vida, o sangue, a esperança, a chance, mas não o desejo, e marca a presença do desejo não pelo ganhado, mas pelo perdido.

Quem nos faz, quem nos constitui são as ausências, não as presenças. É pelo que desejamos e não temos. É, como diz o subtítulo do poema, “as serventias das ideias fixas”, que sempre temos pelo livro que não escrevemos, pelo amor que não é como queríamos, pela profissão que sustenta, mas não agrada; pela pessoa desejada, mas não possuída, o sentimento de plenitude, impossível de ser vivido, que é sempre procurado, e não encontrado.

Claro, essa frustração, esse vazio serão sempre acentuados por alguma coisa, alguma dor pontual, alguma paixão não resolvida, dentre tantas. Essa frustração virá por cada derrota, fraqueza, imperfeição e limitação que podemos administrar, mas não retirar, com faca alguma. Por isso, tão fatal saber das facas em nossa boca, da faca que “sem bolso ou bainha se transforma em nossa anatomia”

Tudo, neste poema, é faca, bala e relógio.

“que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.”

Como nos ferimos, e nos constituímos de feridas, e nas feridas, nas cicatrizes, nós somos feitos mais daquilo que não temos do que daquilo que temos; mais daquilo que desejamos do que daquilo que foi conquistado; vivemos, enfim, mais animados pelo que sonhamos e imaginamos, do que do que atingimos e vivenciamos. Nossos “mais” só servem para os nossos “menos”.

Agora, cortados e preenchidos por nossas facas; mais espessos e densos por termos sido baleados; e por termos sucumbido, enfim, no cronometro do relógio exterior que finaliza o interior de todos nós, refestelemo-nos, enfim, no nosso próprio sangue mudo e estático.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.