Se for a uma festa familiar, não me convide

Se for a uma festa familiar, não me convide

“Hey, Jude, the movement you need is on your shoulders”
(Lennon e McCartney)

A gente às vezes se baseia em certos ditames populares bestas pra ir tocando a vida em frente, vocacionados que somos para a fantasia, para a introspecção de cunho esotérico-religioso, para enganação mental pura e simples, para os artifícios de maquiagem das agruras cotidianas, enfim. Eis a valia de vivermos: fazermos de conta a maior parte do tempo.

Contudo, o tal provérbio “antes só que mal acompanhado” cai como a uma luva quando o assunto em questão é família. Refiro-me, evidentemente, às famílias caóticas, aos lares-masmorras, às sucursais do inferno, às terras de ninguém, às células (malfazejas) da sociedade.

Eis o que representam estes amontoados de gente insana consanguínea — sejam eles bacanas ou pés-de-chinelo — a morarem sob o mesmo teto: infortúnio.

Sem exagero: em determinados casos, é melhor dividir morada com estranhos maltrapilhos embaixo de uma marquise do que conviver com certos papais, mamães, avós e filhinhos. A não ser pela grana (e, quando eu digo grana, refiro-me às grandes fortunas), não vale a pena a azia de um almoço em família para “discutir as relações”. Acreditem: nesses casos, as relações são puramente comerciais. Ninguém suporta bucha se não for por dinheiro.

Porque o que me deixa mais intrigado — para não dizer constrangido, desesperançado, puto da vida — é a convicção de que eu tinha tudo para ser um estorvo ainda maior ao mundo, caso não fosse salvo pelo chamado “berço familiar”. Aposto as minhas minguadas fichas no pensamento de Hobbes, quando ele diz que o homem já nasce prontinho para a maldade. A sociedade nada mais faz senão domesticá-lo, adestrá-lo, administra as suas crises numa espécie de pacto crucial para um convívio minimamente viável, um pacote de medidas preventivas contra o caos.

De tal forma que não vou ficar aqui me gabando por ter passado a infância a gangorrar em berço esplêndido. Também não serei hipócrita o bastante (embora muitos se amarrem numa hipocrisia) para me solidarizar com a bruteza impiedosa dos crápulas, ao ponto de oferecer-lhes a outra face. Não. Nem fodendo. Não sou Cristo, muito menos, Barrabás. Sou, tão somente, aquele cidadão de intelecto mediano com aflições acima da média.

Lá vai a estorieta: eu conheci Valentina Baruzinho na sala de recuperação de um pronto-socorro. O meu convênio não era SUS, mas primava também pela precariedade e abundância de moribundos. Havia, portanto, um engarrafamento de macas estacionadas naquele antro contaminado de queixas e micróbios.

Numa maca, eu e o meu ombro inflamado; noutra maca, Valentina Baruzinho e o seu punho esquerdo mal cortado com estilete. O que foi mal para você é o que desejávamos saber um do outro. Curiosidade mata? Menos que estilete cego (ela que o dissesse). Então deitamo-nos de lado em nossos leitos provisórios e travamos um longo monólogo (mesmo sedada, Valentina Baruzinho falava feito uma mulher).

Não sei se aplicaram o soro da verdade na sua veia íntegra (como eu já lhes disse, na fracassada tentativa de suicídio, Valentina Baruzinho só conseguira cortar pele e o sossego da equipe de plantão daquele hospital), só sei que ela desandou a descrever a própria vida, como se eu fora uma espécie de psicanalista pobretão matando tempo, um ombro amigo que, naquele caso, doía à beça. Desde a adolescência carrego a irritante vocação para confidente fiel, resultado, quem sabe, da minha timidez e da falta de jeito com as mulheres. Namorei pouco, mas ouvi vários melodramas. Dose pra padre nenhum botar defeito.

Pois, então: Valentina Baruzinho disse-me que foi criada num muquifo de uma favela em São Luís do Maranhão. Contando com os cães sarnentos, com os sonhos perdidos e um papagaio que nunca parava de falar (seria uma papagaia?), eram incontáveis as pessoas que moravam naquele cubículo.

Num cômodo dormiam os filhos mais erados, os quais, senão principiados, eram cientes da libidinagem dos adultos; noutro mais insalubre, papai, mamãe e os mais novinhos, pois aqueles pegavam logo no sono, não estorvavam a libido, e muito menos se incomodavam com os gemidos na escuridão da falta de privacidade e querosene.

De tanto ter filhos e sentir fome, a mãe morreu, precocemente, antes dos quarenta, corroída por um câncer de colo de útero. De tanto usar pinga e cocaína, o pai perdeu o emprego, as estribeiras, a compostura, o amor próprio, e se incorporou à paisagem suja das ruas, entregando a administração daquele barraco de lona preta nas mãos dos miseráveis descendentes.

Como era de ser esperar, a meninada debandou. Olhando assim de longe, sujos como só, eram como baratas escapulindo de um bueiro (Valentina Baruzinho falou aquilo como se declamasse um poema de Augusto dos Anjos; senti uma inspiração abissal, então, surrupiei a folha de um prontuário médico a fim de fazer umas preciosas anotações que mais tarde serviriam de subsídio para esta crônica). Daquele dia em diante — dramatizou Valentina Baruzinho — era cada um por si e Deus contra todos (cantarolou versos de “Homem Primata”, da Banda Titãs).

Uns guris foram adotados pelo crime organizado; outras gurias, por uma cafetina de larga experiência (e estreita reputação) na área. O filho caçula teve mais sorte e morreu com um misto de inanição, diarréia crônica e misericórdia divina. Valentina Baruzinho — que, àquela época, ainda era chamada por todos de Ademaldo, o seu nome de batismo — acabou acolhida por um evangélico pederasta que, há tempos, notara o seu jeito efeminado de correr atrás da bola nas peladinhas pelos becos da favela.

Enquanto tinha o couro do braço costurado pelas mãos trêmulas de um imberbe acadêmico de Medicina, Valentina Baruzinho continuava o seu relatório pra lá de impressionante. Meu ombro já nem doía tanto, muito menos as agulhadas desajeitadas aplicadas sobre as chagas ainda frescas daquele transexual boa prosa.

O seu repertório de adversidades caiu-me mais amargo que a dipirona despejada na minha língua pela simpaticona enfermeira de plantão. “Quisera lambê-la de cabo a rabo”, pensei, claramente recuperado do quadro doloroso que me conduzira àquele hospital, embora, apoquentado por pensamentos delirantes (seria efeito de éter, clorofórmio ou simples vadiagem?).

Se saísse daquela enrascada — ela disse — (e parecia claro a mim que ela sairia, sim; afinal, de longe errara o alvo arterial), daria outro rumo a sua vida. Cansada de esperar, há uma década, na fila de cirurgias eletivas do HC, para proceder à mudança de sexo, ela finalmente sucumbiria aos reiterados convites de um empresário gringo para cascarem fora do país. Na Europa, você sabe — não, eu não sabia, eu sequer supunha — seria muito mais rápido e desburocratizado conseguir a tão sonhada cirurgia. Daí, viveria feliz para sempre.

E não é que ela não foi feliz para sempre? Eu soube, dias mais tarde, pelos noticiários locais, que um transexual brasileiro fora brutalmente assassinado numa boate em Barcelona. Por causa do seu olhar triste (ainda que paralíticos, seus olhos de defunta carregavam tonéis de tristeza) e da cicatriz no punho esquerdo, reconheci pelos jornais que se tratava de Valentina Baruzinho.

Eu não. Eu tenho escapado com certa folga da Senhora da Foice. Temporariamente, parei de carregar as dores do mundo, de tal sorte que o meu ombro já não dói mais. Também não lambi enfermeira alguma, se é que isto lhe interessa. Devoro a solidão aos nacos, com o apetite de um poeta. Portanto, se for a uma festa familiar, não me convide. A hipocrisia mata mais que um estilete cego na mão da gente.