E se Deus for a mulher?

E se Deus for a mulher?

“— Acho que Deus é o sol” , ele comentou, visivelmente aturdido, ao passo em que o astro-rei ruía reluzente na rasura do horizonte, a penetrar no mar azul, cuidadoso, leve, poderoso, plenamente destituído de saudade e misericórdia pelos homens.

O comentário foi grotesco, tinha nuanças de heresia e, claro, não tocou a esposa nem por um instante. No fundo, possessa, ela nem aluiu na duna. Embirrou. Não tinha mais saco para as incredulidades dele. Desde que se esbarraram durante um transe coletivo na seita “Segura no cipó-de-macaco e vai”, chapados de ayahuasca e música ruim até as tripas, o sujeito já endeusara, na seguinte ordem, a saber: a chuva na campina; o relâmpago no céu que descortina; a mandioca da farinha fina; o estrondo da pororoca; o eclipse completo da lua; a Banda Eclipse no auge do dano à música popular brasileira; o pudim de leite condensado da Tia Antonieta; a obra completa e remasterizada de Sullivan & Massadas; o incrível gol de bicicleta do Leônidas da Silva; o encontro das águas do Rio Negro e Solimões; o toco de aroeira do cerrado que parecia ter a silhueta do próprio Cristo; o livro “O Anticristo” de Friedrich Nietzsche; o objeto voador não identificado que não somente o identificou, como o abduziu, na Chapada de Alto Paraíso; a dose de morfina que Doutor Roliúde injetou na sua veia, no dia fatídico em que pariu cascalho pelo canal da urina.

Para os casais que se amam, um suporta a dor e a miséria do outro. Não consta em contrato, mas é isso. Vida que segue. Nem bem saíram do pronto-socorro, fizeram o pacto de tatuarem juntos — ele, na tromba; ela, na lomba — no estúdio da Faculdade de Feias Artes de Jijoca-de-Jericoacoara, uma das seguintes frases a seguir, em tributo à cura da medonha cólica renal que o afetara naquela noite: “Elvis Presley está voltando” ou, senão, quem sabe, “Capricha no estereótipo que já tá todo mundo olhando”. Para a maioria das pessoas, só os porras-loucas e as vagabundas tatuam pra valer o próprio corpo. Quem vê cara, não vê coração, mas enxerga longe, além da matéria e da anti-matéria, algo que cientista nenhum explica, um comportamento mais conhecido no nosso meio como “pré-conceito”.

Ops! Desviei-me demais da trama. Vamos voltar à história, pois ela se baseia em delírios reais durante um crepúsculo na Duna do Por do Sol, em Jericoacoara, Ceará. Ao contrário do que ela vivia a repetir, parecia haver nele, não uma arrogante descrença per se, mas, ao contrário, um excesso de disposição para crer nalguma tese religiosa que desse mais sentido à vida. Nutria um inconformismo sincero pela própria ignorância e do restante da humanidade.

No alto da montanha de areia fina, alheia às picarescas particularidades daquele casal hippie démodé, a multidão aplaudiu a bolota laranja enquanto ela afundava no horizonte. Todos os dias, mesmo antes do surgimento das mitocôndrias e dos calangos, o pôr-do-sol esteve ali, à disposição de todos. A turba de turistas reagia assim: uns rezavam o “Pai Nosso”, outros tentavam cantar “Tente outra vez” do Raul Seixas, porém, a maioria dos mortais simplesmente ficava extasiada com a beleza ímpar do ocaso que, não por acaso, fazia supor aos mais antenados que as coisas simples da vida valiam mais do que meter silicone na bunda, declamar extratos bancários embaixo do chuveiro, cavoucar recibos fraudulentos para pagar menos Imposto de Renda, ou fazer fotos self trajando calcinhas-de-renda para subir no conceito e na ereção de amigos e desconhecidos das mídias sociais. Quando não se tem muito conteúdo, a aparência é tudo, vocês sabem.

No auge da descompostura, estacionado no topo da duna branca, há trinta metros do nível do mar, o sujeito resolveu zoar com os turistas, então virou-se para trás, com os braços estendidos para cima, a fazer o sinal do “V” da paz, como se os aplausos calorosos e os apupos da multidão fossem destinados a ele. Ainda bem que o sol já tinha se posto e não presenciou a cena.

“— Reconheceram-me, meu bem”, ele disse, fingindo presunção. A galera riu da patacoada. Brasileiros riem de tudo e qualquer coisa: desde as falcatruas políticas recorrentes e até leniência cívica inerente aos povos incultos manipulados.

“— As tetas da sua esposa são comoventes, meu velho”, soltou mais essa prum sujeito de meia-idade que abarcava a cintura de pilão de uma loira, a qual, certamente, jamais ouvira falar em paçoca de carne socada no pilão, e cujos seios, de tão rijos e determinados, pareciam ter saído daqueles calendários de oficina mecânica. Os mecanismos sinápticos que pelejam nas mentes dos sem-noção são teimosos. Salvo pelo idioma, o casal sérvio não entendeu uma só palavra que o sujeito dizia.

A multidão dolente desceu a duna pelo caminho mais fácil. Ele não. Ele tomou um tranco por trás desferido pela própria companheira — um golpe seco e preciso, mais conhecido como “alavanca dos cretinos” — fazendo com que rolasse feito um rocambole pelo íngreme paredão de areia, até se estatelar na praia, de barriga pra cima, braços e pernas abertos, largado. Enfim, o sujeito parecia uma estrela-do-mar morta de sede. A maré subia. O conceito com a esposa decrescia mais rápido que o cagar da gaivota no barquinho a deslizar no macio azul do mar. Casamento é assim mesmo, cheio de canções inesquecíveis, cagadas e muitas reconciliações.

Atordoado pela queda, adivinhem só: foi socorrido pela sérvia com longas pernas de louça, cabelos loiros feito o sol, olhos cor de oceano, e um par de tetas leitosas que pareciam ter saído de uma tela de Rembrandt. Pensou que tivesse morrido. Pensou que tivesse chegado ao céu. Abriu os olhinhos arranhados pela areia. Avistou a formosa sérvia, semblante lindo, porém, tenso.

“— Meu Deus! O senhor é uma mulher, meu Deus?!”. Preocupada com o bem estar daquele nativo estranho, beneficiada pelo desconhecimento absoluto da língua portuguesa, a moça não entendeu bulhufas do que ele dizia.