Dormi no ponto

Dormi no ponto

Aquela não é terra para velhos. (…)
Um homem velho é apenas uma ninharia,
trapos numa bengala à espera do final.

— William Buttler Yeats —, em “Velejando para Bizâncio”

Tenho a nítida impressão de que dormi no ponto. E não foi no ponto de ônibus, nem no ponto do avião. Dormi mesmo foi no ponto da vida. Faltou-me clarividência para os momentos exatos de cristalização das oportunidades. Faltou-me o faro para identificar a hora e a vez em que determinado sonho poderia converter-se em projeto e ser entabulado para o sucesso. Não posso negar que até acertei algumas vezes. Acho que fui providencial, por exemplo, na vez em que ainda criança,  com o fruto do meu trabalho comprei o primeiro enxoval de estudante. E contrariando a todas as expectativas e a vontade dos parentes (com exceção da minha mãe) comecei a estudar. Mas esta foi sem dúvida uma das raras vezes em que acertei na mosca.

Penso às vezes que sempre padeci de algum tipo moderado de síndrome de Peter Pan. Moderado e possivelmente invertido. Na verdade nunca alimentei o desejo de ser indefinidamente uma criança, como é descrito na síndrome. Mas fui cultor da sensação de que a todo tempo me encontrava muito novo para arcar com certas responsabilidades, para assumir posições desafiadoras que a vida impunha. Parece que no fundo eu acreditava que, da mesma forma que aquele cavalo arriado estava passando, outros haveriam de passar, no momento mais propício, quando eu estivesse maduro, mais bem preparado.

Engano mais rotundo, o meu. A gente nunca está pronto ou completamente preparado para os desafios da vida. A gente vai aprendendo a domar a fera ao mesmo tempo em que se doma. Você pode até tentar domar-se para depois afrontar os desafios. Mas quando os desafios se apresentarem, o comportamento deles não será exatamente do jeito que você imaginou no treinamento. Sempre vai restar uma necessidade, ainda que residual, de domar-se, enquanto se doma o bicho. Ou seja, ninguém ensaia para depois viver. Vive-se enquanto aprende e morre sem saber. Até porque quem diz que sabe tudo e domina completamente um assunto, talvez esteja é carecendo de informações adicionais.

Mas como eu disse, sempre me achei muito jovem para determinadas coisas, para correr certos riscos, para chutar o balde, ou o pau da barraca das imposições externas. Para dar um strike nas circunstâncias adversas e depois reunir só o que convém. Fazer uma paretagem na vida: jogar 80% no lixo e ficar com os 20% que realmente valem à pena. O filé da vida. O que é pior em tudo isso é que ao me tornar um sexagenário, me vi de repente demasiado velho para as coisas que até bem pouco me achava muito jovem. Acho que passei da mocidade para a velhice, num salto, sem me ater ao ponto da maturidade. Mas como diria Cydoidão, meu personagem de “Mundocaia”: Agora Inês é Marta.