A morte pede carona. O amor vai a pé

A morte pede carona. O amor vai a pé

Queria ter estado lá para te fazer respirar de novo, para tirar do teu rosto a máscara azul do desespero, devolver-te à vida. Queria ter estado lá e, quem sabe, aquele seria o primeiro ser humano que eu teria matado com as próprias mãos. Pedra. Graveto. Pau. Porrete. As unhas cravadas no pescoço, a esfacelar a carne. Qualquer coisa de danosa já servia. Instinto selvagem. É isso. O essencial instituto da violência do homem pelo que é vivo. A humanidade não dá sossego sequer às rochas, que sempre pareceram inanimadas, descomprometidas com a morte. “Legítima defesa”, alegariam homens de toga preta. O fato é que não embarquei contigo naquela derradeira viagem e, agora, quem quer sumir do mapa sou eu.

Vi, revi, olhei mais uma vez estampada nos jornais a foto do teu algoz, o facínora com quem embarcaste, sem que presumisses, na tua última viagem. Tento me recompor a todo custo. Não me interesso pelo aniquilamento dele. Isso não cura nada. Basta de tanta violência. Também não ousaria me matar. Preciso pensar mais em ti. Tudo clama na nossa casa: a cama sem o teu sono, o bichano sem o teu chamego, o jardim florido sem a tua água refrescante. Sinto sede da tua voz, saudade do teu cheiro. No quintal, a dama-da-noite exala um perfume escandaloso e adocicado que, nem assim, torna o destino menos amargo. Queria agora o teu beijo, mas, minha boca não tem feito outra coisa nos últimos dias senão calar e chorar.

Não sou de me queixar às pessoas. O que não tem remédio remediado está. Nem sei se quero justiça. Justo seria que minha memória se apagasse. Lei nenhuma fará com que tu entres novamente por aquela porta sorrindo com o corpo inteiro, esbanjando jovialidade, rivalizando os seus 22 anos com a luz milenar do sol. A escuridão me abarca. Os amigos cercam-me de cuidados, ensinam-me que o sofrimento é um mal comum a ser superado com paciência, diligencia e muita fé no Criador. Que dor, que fé ordinária eu possuo. Deus, se existe, deve estar chocado com a minha descrença. “Ele quis assim” — é o que muitos dizem —, que tu me faltasses, que tu doesses em mim como a um furúnculo. Ele sempre espera de nós um algo mais, afinal, somos mais que pústulas, somos mais que furúnculos, somos exercícios de pura superação. Eu, tu, nós nunca quisemos as coisas da mesma forma que Deus teima em querer.

Na sala, o meu gemido. Um pássaro canta na casa ao lado. Ledo engano supor que ele esteja feliz. O vizinho, que se intitula dono da ave, jura que o bichinho traz alegria ao lar. Nós — eu e o passarinho — sabemos que ele está equivocado. Não vejo vantagem, não sinto nada de especial por um homem que cria aves em gaiolas. Aqui, as janelas não têm grades. Os gatos podem transitar com liberdade sobre um muro desprovido de concertinas. Será que a dor um dia tem conserto? Moro numa casa popular quitada, linda, confortável, porém, de que vale uma gaiola de ouro se o passarinho não canta? Não instalei alarmes contra invasores. Devia ter sido mais cuidadoso, devia ter pensado que a saudade invadiria até mesmo os prédios de segurança máxima. Ora, o mínimo que Deus podia fazer por mim neste momento era ordenar que os ponteiros do relógio girassem em sentido contrário.

A solidariedade das pessoas transborda e me constrange. É comovente como gente que jamais supúnhamos, nos abraça e chora. Nos últimos dias, há sempre alguém por perto disposto a emprestar palavras, a me afagar, a me oferecer um mimo. Não sou tolo como o bichano aqui de casa. Malicioso, o animalzinho trança o corpo entre as minhas pernas. Faz-me cócegas na alma, se é que ainda possuo uma. É um malandro. Alimento-o. Sei muito bem onde em mim aperta o calo da solidão. Sinto, contudo, que sou uma espécie tristonha de bicho de estimação de um bairro inteiro. Contaram-me que há uma indignação generalizada pela forma com que desaparecestes da vida ainda tão jovem. Chamam a isso comoção nacional. Nada mal. Tudo bem. Fica assim. Pouco importa. Apesar do esforço coletivo, por mais que me alimentem, essa fome aqui dentro não passa, não passa, não.