Prometo não ejacular no seu pescoço

Prometo não ejacular no seu pescoço

O coma é quase sempre irreversível; a burrice, não. Dá pra lidar melhor com a burrice, mesmo sendo burro. Sendo menos burro, por exemplo. A mancha no pescoço parecia mingau, mas, não era mingau. Como de costume, eu seguia num daqueles infernais vagões lotados da Loosers que fazia a linha entre Centrinho-do-Meio e Cágados Suaves, lucubrando, fazendo contas, folheando um livro de poemas, sonhando feito besta aos 51 anos, o que eu faria quando, finalmente, pusesse as minhas patas no FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Sofrimento). Uma hora e meia viajando em pé, chacoalhando feito um nelore, cheirando sovacos da Jequiti. Geralmente, era assim. Naquele fatídico dia, contudo, dei um azar danado ao conseguir um assento livre. Ela, poltrona, sorriu para mim. Eu, passageiro, sorri para ela. Foi amor à primeira vista. Sentei. Não havia no meu raio de visão nenhum raio de velhota ou de mulher grávida a quem eu tivesse que, gentilmente, ceder o meu precioso lugar. É óbvio que eu me levantaria. Sou um daqueles raros casos de babacas que cumprem as leis vigentes no país.

Como eu já disse, a mancha no pescoço parecia mingau, mas, não era mingau. Algo respingara, também, miseravelmente, sobre o meu Neruda. Demônios! Senti a presença de um jato morno a bater ritmado contra a minha nuca, um sensação ímpar, como se um par de gaivotas me cuspisse pelas cloacas rajadas de merda. Levei a mão no pescoço e senti a inconfundível textura da gosma, uma espécie de catarro repleto de espermatozoides anônimos nadando desenfreados, a esmo, acrescido do tradicional aroma de água sanitária. Não entendo como ainda tem gente que bebe isso. Aturdido, incrédulo, abilolado, olhei pra cima, pra trás e flagrei um magrelo com o rosto ruborizado, a testa franzida, fazendo carinha-de-dor e revirando os olhinhos. O desgraçado tinha acabado de gozar. E foi péssimo pra mim.

Fiquei assim meio passado. Cheguei a pensar que estivesse sonhando acordado, sempre fui bom nisso. Por que comigo? Isso de ser assediado por homens, dos caras me errarem, já tinha acontecido antes, sempre relevei de boa as investidas; entretanto, nada que se comparasse a levar golfadas de langonha na droga do meu pescoço dentro de um odioso trem abarrotado de Loosers. O fedor de esmegma recendeu dentro do vagão calorento. Precisava chover. Precisava de explicações. Alguém precisava prender logo o Lula, comentou um ceguinho embarcado que vendia loterias. Tava tudo errado. Tava tudo fodido. Como é que Deus permitia que coisas daquele tipo acometessem os seus filhos ateus? Era muito revanchismo da parte do Pai.

Tive o ímpeto de socar o saco do filho-da-puta, mas fui contido por migalhas de civilidade que jaziam na minha mente, prestes a serem devoradas por ratos-neurônios. Um passageiro marombado, provavelmente, um lutador de vale-tudo, tomou as minhas dores e finalizou o magricelo com uma chave-de-braço que o manteve imobilizado, fora de ação, sem ar dentro dos pulmões, roxinho que nem a muxiba varicosa que pendia braguilha afora. Abusadores geralmente sofrem de ejaculação precoce e têm os pênis pequenos. Acho isso justo.

Todos ficaram indignados com a porra do atentado, ou melhor, com o atentado de porra. Alguém (sempre tem algum piadista fazendo treta) insistiu que aquela seria uma novíssima modalidade de ataque terrorista do Estado Islâmico, desta feita, no Brasil. Uma septuagenária, dessas doces criaturas para quem eu cederia o meu assento quantas vezes fossem necessárias, abriu a bolsa e me ofereceu lencinhos descartáveis sabor pêssego-almiscarado para que eu me limpasse. Não sei quanto a vocês, mas, na minha época, alienados como aquele eram taxados de tarados. Hoje, eu desconheço qual será o termo politicamente adequado para conceituar homens tresloucados individualistas que ejaculam nas pessoas dentro de transportes coletivos. Eu já ouvira falar das mulheres encoxadas dentro dos ônibus, agora, homens abusados por lunáticos era a primeira vez e, logo, comigo.

Fomos parar na delegacia de Tranqueiras. Puxaram a ficha corrida do sujeito e verificaram que ele já tinha pelo menos dez passagens pelo mesmo motivo, ou seja, ataque violento ao pudor contra homens brancos calvos longilíneos de aparência serena que viajavam em lotações lendo livros de poesia. Perguntei por que motivo o sujeito não permanecera enjaulado. “Mazelas da lei”, retrucou o delegado. Tanto assim que, no dia seguinte, eu soube pelos lábios sensacionais da apresentadora de um telejornal sensacionalista que o acusado (um cuzão, diga-se de passagem) fora colocado em liberdade por um magistrado que o considerou um transgressor de menor potencial ofensivo, que não tinha oferecido constrangimento, tampouco, violência física contra a vítima, no caso, eu, o escriba que lhes presenteia com esse texto-lixo.

Mais tarde, o estroina assinou com o polegar da mão direita um Termo de Ajuste de Conduta no qual se comprometia a não mais ejacular no pescoço de quem quer que fosse, enquanto estivesse embarcado numa das incontáveis lotações que cortavam a monumental, a insana, a incrível cidade de São Paulo. Será que cumpre? Por via das dúvidas, de hoje em diante, eu vou de bike.