A casa e a grande reforma

A casa e a grande reforma

Meu sonho de uma noite de verão foi e tem sido reformar minha casa. Essa ideia me persegue há muito tempo. Mas, como morava e trabalhava em outra cidade, em outro estado, não fazia sentido investir todo meu limite de empréstimo, minha disposição e minhas amizades nesse empreendimento.

Depois da minha ida a Portugal, que já faz mais de 2 anos e meio do início, essa é minha fixação mais inconsciente. Talvez tenha percebido isso só agora, apesar de estar constantemente na minha lista de desejos. Como é um desejo grande, que ocuparia deveras minha vida, falava sobre ele sempre de relance, mas estava presente ordinariamente. Pois esse desejo foi aos poucos tomando lugar nas minhas conversas, nos planos e execução.

Uma nota de intelectualidade nesta crônica: lia pelas tantas vezes o riquíssimo “Dom Casmurro”, do maior dos maiores, por conta de uma disciplina que acompanhava em Lisboa, ministrada pelo professor Abel Barros Baptista. Então, o professor chamava a atenção para a fantasmagoria e a casa da infância de Bento Santiago, o Bentinho. Este fazia questão de que a casa nova de Engenho Novo fosse igual, reproduzindo a casa antiga de Matacavalos, mesmo que a antiga casa não o reconhecesse mais. Nisso também entendemos a pergunta sobre Capitu: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos (…)”. O que seria um modo de unir as pontas da vida. “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência.” Como as casas são importantes em Machado!

Logo tive, portanto, uma boa justificativa para a reforma da casa. No aspecto subjetivo principalmente, que são todos, pois o resto são afazeres e “tarefas”, e estive a lidar psicologicamente com a doença e a reforma, tudo isso buscando integridade e dignidade. Além das demais importâncias muito relevantes. Nas terapias online ou no papo com a namorada portuguesa de Cascais, tinha de soslaio (nunca achei que nessa vida fosse usar uma palavra tão chique e literária assim!) essa fixação, mesmo que tímida, mas já forte.

Isso tudo para dizer todo o mais que vem a seguir. Os amigos foram percebendo. Primeiro, o Herberth me ajudou a reformar, como bom pintor que é (contém ironia), o meu quarto. Mas eu queria mexer na casa toda, justamente para dar melhores condições de acessibilidade a todos da casa e, também, certamente, como o pagamento de uma espécie de dívida histórica com minha mãe e com meu irmão, que não tiveram condições, por diversos motivos, de fazerem uma “grande reforma”.

Queria uma grande reforma porque minha vida passaria necessariamente por ser reformada, e não teria tempo para processar o meu próprio luto; não dá tempo de só lamentar, é lamentar e seguir, lamentar e seguir… Nesse sentido restrito, isso de ser uma doença hereditária “ajuda”, pois o luto perdura por gerações, o que faz com que o amadurecimento seja mais possível, sendo, né; o que nem sempre se processa.

Sobre a reforma em si. Meu amigo Léo tem várias qualidades. Meus amigos são melhores do que eu. O Léo é paciente, tocador de obra, sensível, de escuta apurada e não se esquiva de ideais e conversas francas. E aí que ele disse: “Bora fazer essa reforma, uai!”. E eu: “Bora, ué!” Ele gosta de construir e da solidez dos laços. Pronto, achei um maluco para fazer maluquices comigo.

A Maria Carolina me alertava para os males de uma reforma. Tendo uma experiência não muito boa, afirmou peremptoriamente (palavra que aprendi na CPI dos Correios numa diatribe entre Roberto Jefferson e José Dirceu — dois malas — que deu origem ao julgamento pelo STF do conhecido “Mensalão”): “Não faça reforma, Marcelo. Muda de casa. Vendam a casa e comprem uma nova do jeitinho que vocês quiserem, mas obra, não”. E eu: “Mas, Maria, meu amigo Léo que vai tocar”. E ela: “Você deve gostar dele, né. Pois então, vocês vão brigar”.

Não brigamos e não vamos brigar. Pelas qualidades dele, que deve ter ficado puto com meu horário de acordar. Mas fazemos uma boa dupla: o policial bom e o policial mau.

O mais difícil é voltar à casa, alterar a vida de todos, fazer adaptações, explicar muitas e muitas vezes questões de obra que você não sabe ao certo, para os moradores, especialmente sua irmã perguntar se o ar-condicionado não é melhor com aqueles 20 cm de diferença para a esquerda, isso tudo ainda sem ar-condicionado, sem nada feito e com resoluções diárias nos próximos seis meses, que vai desde outubro e contando…

Sem dúvidas, a parte boa, para quem não gosta de derrubar paredes simplesmente, é a definição dos detalhes da construção, que vão desde os milímetros do cobogó (que o povo aqui chama de bogodó) que estavam tortos até onde vai ficar o gás e a lixeira. Mas o mais legal são as cores: mais vivo ou mais amenizado, mais quente ou mais frio… o que acham!? Ainda há tempo.

Nota diária: meu pai acompanha todos os campeonatos de futebol possíveis, como um bom torcedor/sofredor do Vasco da Gama e do Goiânia Esporte Clube, fala dos times com os pedreiros como se eles estivessem a par, não estão, mas vale a interação, que já faz com que os pedreiros o tenham carinhosamente e ele também os pedreiros, pautando outros temas, como o beijo gay na novela, racismo, os políticos que desviam verbas, claro. Enfim, é melhor do que o assunto de elevador quanto ao clima.