Dias Perfeitos, de Wim Wenders: a inexorável repetição Divulgação / Wenders Images

Dias Perfeitos, de Wim Wenders: a inexorável repetição

O que, para alguns, pode se apresentar como um conformismo melancólico de uma vida trivial e acomodada na repetição, para outros, pode surgir como um reencontro com a finitude, marcada pela resposta do esteta à beleza da vida cujo valor se encontra no fim. “Dias Perfeitos”, filme de 2023, dirigido por Wim Wenders, a partir de um roteiro escrito por Wenders e Takuma Takasaki. Uma coprodução entre o Japão e a Alemanha, protagonizada pelo genial ator Kōji Yakusho. O filme retoma um olhar à uma estética do gesto, com delicadeza e reverência aos detalhes da vida ante a finitude.

Ao escrever sobre a transitoriedade, Freud (1916) aponta para duas posições diante da morte, recolhidas de uma conversa com o amigo e poeta Rainer Maria Rilke. Freud observa que apesar de admirar toda a beleza à sua volta, o poeta não extraía daí nenhuma alegria, pois o perturbava a efemeridade das coisas, destinadas à transitoriedade. Ou seja, a constatação de que as coisas não têm permanência absoluta destituiria das mesmas o seu valor de beleza e a fruição com elas. Freud, com um certo espanto, diverge do amigo. Para ele, é justamente a finitude que valora a beleza daquele momento. A questão que se coloca, na observação freudiana, é que o valor da vida está em ter um final.

A atitude de Rilke, diante da morte, tem ecos melancólicos, já escutados no texto escrito pouco depois, “Luto e Melancolia” (1917), quando Freud fala sobre como o melancólico é o mais realista dos humanos. A questão é o porquê que ele adoece por isso. A oposição entre a realidade e o adoecimento melancólico se coloca da mesma forma na conversa com Rilke. A realidade crua que o melancólico tanto sabe é a da morte, tanto que ele se identifica com o objeto morto. Mas, sob seu olhar de esteta, Freud vê nisso, o motivo de entusiasmo e beleza da vida. É porque há uma finitude das coisas que se pode valorizá-las e se satisfazer fruindo, com elas, momentos.

A impossibilidade de fruir é própria do adoecimento neurótico. O impedimento se constitui como barra produtora de formas substitutivas e adoecidas de satisfação.

Em “Dias Perfeitos”, o sr. Hirayama, é um zelador de banheiros públicos. Uma profissão de baixo status social, mas que ele realiza com o esmero e cuidado digno da ‘areté’ grega, ou seja, uma excelência virtuosa.

Sua profissão não tem status e reconhecimento social, como podemos observar na cena em que o sr. Hirayama, mesmo ajudando uma criança a encontrar a mãe de que se separara em um parque, não recebe qualquer agradecimento ou simpatia. Até sua irmã, de boa colocação social, pergunta incrédula se ele limpa banheiros. Mas o sr. Hirayama não limpa banheiros, somente. Ele o faz com o entusiasmo de quem cuida não de algo (os banheiros), mas do próprio gesto. A ‘areté’ do gesto sem finalidade condicionada que, só um olhar ainda não docilizado pelo jogo de poder das identidades dos papéis sociais, representado no olhar da criança perdida, pode reconhecê-lo e tratá-lo com o respeito digno da cumplicidade que um Eu desinflacionado de uma criança pode ter.

Esse Eu desinflacionado é um elemento que aponta para a capacidade de fruição da vida. Uma característica vista em figuras literárias como personagem dostoieviskiano, o príncipe Míchkin, deO Idiota”. Assim como o sr. Hirayama, o príncipe é um contraponto ao um olhar carregado com as regras dos jogos de poder da sociedade, que se tornam impedimentos que inflacionam a vida de pulsão de morte.

E é aqui, com a pulsão de morte, que um aspecto central do filme se apresenta: a repetição.

No filme, ela é marcada por uma metonímia da arvore e do sol, como fios-condutores da história de repetição do cotidiano. Na moldura do silêncio, o sr. Hirayama sai todos os dias no nascer do sol. São músicas com sol: o filme se inicia com “House rising Sun” (The Animals) e termina com “Feeling good” (Nina Simone). O sol através das árvores captado em fotos tiradas sem o controle do próprio olhar. Já as árvores, estão nas fotos, na Skytree (torre de radiodifusão que é um monumento em Tóquio) sob a qual seu olhar se referencia, na pequena muda de árvore que passa a cuidar, nos romances que ele lê antes de dormir.

A repetição afirma aspecto inexorável, no filme. Algo cuja sutileza se dilui no cotidiano a ponto de só ser percebido com um certo incomodo ‘après-coup’. É nesse sentido que o comum da vida é a sua automatização via investimentos repetitivos no mesmo, como resposta a ideais identificatórios. O sr. Hirayama, apresenta uma espécie de desinflação das identificações que vai na direção do cuidado com o gesto a cada repetição. O real irrompe como uma temporalidade que não cessa de não se inscrever. Uma repetição diante da qual, a alternativa é uma asserção de uma certeza antecipada sem garantias, um gaio gozar dessa vida que terminará em cada pequeno final que se repete. Contraponto a inflação de um sentido de si, como centro do mundo que recusa a castração imposta pela finitude da vida, como o sofrimento de Dorian Grey.

A angústia com o sem sentido da vida, permanece presente, para sr. Hirayama, mas como angústia alegre, cuja fruição de momentos com um Outro vem em sua própria mensagem invertida. Como o jogo com um desconhecido, representado nas cenas do “jogo da velha”, em que sr. Hirayama responde ao convite a uma brincadeira, sem vencedor nem perdedor, só o encontro anônimo em torno do brincar. Ao final da partida, o laço se desfaz, termina, marcando a repetição da finitude dos encontros e do gesto gentil.

Sr. Hirayama opera um deslocamento das referências de valores ao não responder o Outro a partir do instituído. Ser um zelador de banheiros públicos, se interessar por árvores, fitas cassete em uma sociedade ‘time is money’, marcam a contradição de valor que se confirma na recusa a vender um cassete antigo por 120 dólares. O valor do dinheiro, ali, não incorpora a identidade e o referencial de valoração do sr. Hirayama. O valor, para ele, é o do cuidado com os momentos.

Em “Dias Perfeitos”, o rosto do sr. Hirayama é um ponto focal na edição das cenas. Um rosto emoldurado ora pelo silêncio, ora pelas músicas ao redor. A sutilezas das expressões não são telegrafadas por outros elementos de cena, mas causam afecções no expectador, no que é de mais primários, como em crianças que se olham pelo olhar da imagem especular. É nesse sentido, que Deleuze e Guatarri (“Mil Platôs, vol III”) dizem que rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência. Na cena final, é um enquadre no rosto do sr. Hirayama que provoca afetos ao mesmo tempo. Não há definição do que ele está sentindo, mas ele está sentindo a vida como uma incomensurabilidade que exige coragem para… sentir.

Talvez seja por isso que “Dias Perfeitos” tem interpretações diversas, até mesmo como um filme desesperador ou tedioso. É o efeito de um rosto que coloca o espectador diante do muro com o qual seus próprios significantes se chocam. O rosto de sr. Hirayama, expressa afetos que não estão fincados em um traço que possibilite uma interpretação ordenada, via sentido. A sutileza das expressões do rosto do sr. Hirayama resistem a significância ao passo em que protagoniza a redundância na repetição do cotidiano. O sr. Hirayama é ser-para-morte que dança na borda do buraco onde se aloja as paixões e subjetivações. Isso volta para o espectador como convite à reverencia do gesto e a coragem diante da inexorável repetição do tempo.