O filme, ovacionado por dez minutos no Festival de Cinema de Veneza, está no Prime Video Divulgação / Elite Filmes

O filme, ovacionado por dez minutos no Festival de Cinema de Veneza, está no Prime Video

Certos acontecimentos na vida de uma pessoa são tão brutais que a levam a não desejar nada além de uma dose generosa de cianeto. Por sorte, essa não foi a escolha do protagonista de “O Pássaro Pintado”. Baseado no romance homônimo de Jerzy Kosiński (1965), o filme foi lançado em 2019, sob a direção de Václav Marhou, e relata a história de um menino judeu que é enviada por seus pais para a casa de uma tia em um lugar não definido do leste europeu, na esperança de poupá-lo do horror dos campos de concentração.

Entretanto, após a mulher sofrer um derrame e a casa pegar fogo, o menino se vê jogado à própria sorte no meio de florestas inóspitas, aldeões sádicos e supersticiosos e os horrores da 2ª Guerra. Lutando pela própria sobrevivência, a criança vaga de lugar algum para lugar nenhum, quase sempre encontrando algozes por onde passa.  

Assistimos, então, a um “crescendo” de violência que parece não ter fim. O menino é submetido a uma série de abusos físicos, psicológicos e sexuais pelos personagens que cruzam seu caminho. As hostilidades tornam a palavra “infância” um termo ininteligível, que só pode ter significado em algum outro mundo muito distante da Europa Oriental da primeira metade do século passado, palco de um retorno ao estado de natureza hobbesiano. No filme, a “luta de todos contra todos” deixa de ser um conceito teórico da filosofia política e alcança o patamar da realidade.

A luta pela sobrevivência degenera todo o desenvolvimento do garoto. A única “relação de trabalho” que ele conhece é a escravidão; o seu “despertar sexual” é um estupro; o representante da igreja que devia protegê-lo o entrega nas mãos de um psicopata degenerado e o seu exemplo de masculinidade é um oficial vingativo e sanguinário do Exército Vermelho que o ensina o catecismo da Lei de Talião: “Olho por olho, dente por dente”. É claro que isso tudo redunda numa personalidade fria, capaz de grandes violências. É alguém que faz sofrer porque está cansado de sofrer.

A brutalidade das cenas fez muitos espectadores se levantarem durante o 76º Festival Internacional de Cinema de Veneza. De acordo com Marhou, em entrevista concedida à BBC, isso se deve ao fato de seu filme retratar coisas que realmente podem ter acontecido: “Se você está assistindo a um filme de Tarantino, as entranhas estão espalhadas e você está bem porque isso é um conto de fadas. Então você assiste ‘O Pássaro Pintado’, que retrata incidentes que você acredita que podem acontecer, e você ficará emocionado”. Não à toa, o “The Guardian” classificou o filme como um “tour de três horas pelo inferno”. Apesar disso, na sua estreia, o longa foi ovacionado pela multidão em pé durante dez minutos e ganhou muitos elogios da crítica especializada.

O nome do filme é representativo de toda essa brutalidade e se deve a uma cena da primeira hora. Para sobreviver, a criança trabalha para um velho criador de pássaros alcoólatra. Em um dado momento, o velho lhe mostra o que acontece quando ele pinta um pássaro e o lança para dentro de uma revoada. Todos os outros pássaros imediatamente o atacam até a morte. A situação do menino é precisamente essa. Como criança de rua, desprotegida e, ainda por cima, judia, é como se houvesse um grande alvo nas suas costas. É uma lembrança salutar que o holocausto só foi possível graças à colaboração da população local.

Muitos críticos apontaram que o simbolismo e a beleza da fotografia fazem lembrar o estilo de Tarkovsky. Realmente, o diretor tcheco nos proporciona uma descida ao inferno, mas é um inferno esteticamente interessante e, em alguns momentos, chega a ser mesmo sublime. Dessa forma, mesmo o horror inominável de um ataque cossaco em uma aldeia de agricultores tem um ar mais artístico do que documental. A violência está lá, mas ela vem acompanhada de um “élan” que só a 7ª arte é capaz de proporcionar: é uma poesia sangrenta.

Apesar de tudo — e agora vem um “spoiler” —, não saímos totalmente acabados desse inferno estético. Ainda resta alguma esperança, como a última cena sugere: o menino está com seu pai numa espécie de ônibus (contra todas as expectativas, eles se reencontraram). Em uma cena anterior, seu pai o havia perguntado se ele ainda lembrava do próprio nome. Ele não respondeu nada na hora. Agora, na cena final, enquanto o pai dorme, o menino usa o dedo para escrever o próprio nome na janela embaçada do ônibus — “Joska”. É um sinal que ainda lhe resta um pouco da própria humanidade. Nem tudo está perdido.