Comédia com Tim Allen e Sigourney Weaver, na Netflix, é injeção de ânimo para dar conta do fim de recesso Divulgação / Dreamworks Pictures

Comédia com Tim Allen e Sigourney Weaver, na Netflix, é injeção de ânimo para dar conta do fim de recesso

Pode haver na via Láctea quem nunca tenha sonhado em ser um viajante desta e de outras galáxias, mas decerto essa pessoa renunciou, ainda que sem querer, ao poder dos devaneios que nem a razão mais transparente jamais poderá ter. Essa mágica do sonho, da fantasia, do anseio pelo novo, habita o pensamento de toda criança, e a televisão, admitamos, é responsável por boa parte das loucuras sadias que gostaríamos que o mundo guardasse — sim, já foi muito mais, e sim, televisão virou coisa de gente acima dos quarenta, assim mesmo em doses homeopáticas.

Entendendo que “Heróis Fora de Órbita” foi lançado num jurássico 1999, entende-se que este foi um filme que representou bem o espírito de seu tempo, remexendo temas já bastante esmerilhados pelo cinema. Dean Parisot não se deixara paralisar por um receio tolo de ser atropelado pelo tal progresso e essa é a força de seu trabalho.

Talvez soubesse que o longa não tardaria a ficar datado, mas sabia também que esta era uma história digna de ser contada. Estimou os riscos e, felizmente, a coragem prevaleceu. O roteiro de Robert Gordon e David Howard, simplório e pleno de boas alegorias, propõe questionamentos acerca de temas que já tiveram muito mais relevância, sem dúvida, mas que acabaram sendo o começo de uma discussão mais e mais atual.

A convenção que reúne fãs para rever o primeiro episódio de “Galaxy Quest” dezessete anos depois tinha tudo para ser o resgate das ilusões perdidas do grupo de felizardos espectadores que espera pela apresentação do elenco, não fosse o elenco já estar completamente esgotado. A começar por Alexander Dane, um ator de teatro conhecido no mundo todo por ter feito Ricardo 3º na peça homônima de Shakespeare, mas que ganhou dinheiro mesmo num papel secundário no programa, o que tornou-se uma fonte perene de deliciosos conflitos existenciais galvanizados pela verve técnica e passional de Alan Rickman (1946-2016).

Alexander se recusa a subir ao palco, ruminando culpas que só ele sente, até que o piloto da nave, como sói acontecer, resolve a contenda com a psicologia que conhece. Jason Nesmith, o comandante Peter Quincy Taggart vivido por Tim Allen, é o antípoda perfeito do colega e lida muito bem com a celebridade, a fortuna e as inumeráveis conquistas de alcova com que quase duas décadas em frente aos holofotes regalaram-no. Os outros quatro membros da trupe balançam entre os pontos respectivamente ocupados por Alexander e Nesmith, empenhando-se em achar glória onde só haveria ultraje, e Gwen DeMarco é o arquétipo da mulher que se submete a abusos em nome de alguma forma de independência. 

Um detalhe da anatomia de Tawny Madison, a adjunta do comandante Taggart, de Sigourney Weaver, deu motivo a um sem fim de cenas de um trash meio pornográfico, enquanto o Laredo de Tommy Webber, o garoto negro tomado por uma espécie de mascote, e Chen, o faz-tudo da tripulação, disputam o nada honroso lugar de minoria tolerada — menos incômodo que o servilismo de Guy Fleegman, o figurante de luxo. Sigourney Weaver, Daryl Mitchell, Tony Shalhoub e Sam Rockwell protagonizam os momentos de descontração que são o DNA da história, em especial quando algo de muito estranho acontece. Uma limusine chega à mansão de Nesmith, e ele pensa que são os admiradores do seriado com quem trocara um dedo de prosa na saída da malfadada confraternização, sem reparar que eles ainda estão com os cabelos bizarros e os uniformes estilosos à “Jornada nas Estrelas”.

Num ponto inexpugnável do universo, espécies rivais de alienígenas se batem e os extraterrestres bonzinhos (claro), que também  assistem “Galaxy Quest”, procuram Nesmith, certos de que ele é capaz de incorporar Taggart no cenário mais realista em que poderia encarnar seu personagem. Mathesar, o líder dessas criaturas dotadas de tentáculos, mas escondida sob uma carapuça humanoide irrepreensível, e uma fala irritantemente pausada, vertida para os idiomas da Terra com o auxílio de um tradutor (quase) à prova de falhas, pensa que o chefe da fictícia missão interplanetária é o único capaz de ajudá-lo a reconquistar a hegemonia sobre Termia, muito por causa do lema do personagem do personagem de Allen, “Nunca desistir, nunca se render”, repetido até a náusea ao longo dos 102 minutos de projeção. 

Enrico Colantoni chega a roubar a cena em muitas ocasiões, investindo, acertadamente, nos trejeitos caricatos de Mathesar. Por outro lado, a invasão humana ao lar do mandachuva daqueles homens-polvo lembra um “Planeta dos Macacos” um tanto empobrecido e falsificado, com os homo sapiens sapiens vitoriosos e seus finais felizes, definitivos e jubilosamente bregas.


Filme: Heróis Fora de Órbita
Direção: Dean Parisot
Ano: 1999
Gêneros: Comédia/Ficção científica
Nota: 8/10