Entrando em cana com o Papai Noel

Entrando em cana com o Papai Noel

Se eu contar vocês não vão acreditar. Justamente, por isso, eu vou contar. Conheci um sujeito que fazia bicos como Papai Noel. Pançudo, sorridente, bochechas rosadas e gentil feito o diabo. Há sete anos, ele enfrentava cerca de dois mil quilômetros de estrada, da sua cidade até aqui, para permanecer durante todo o mês de dezembro se revezando com outros dois indivíduos no papel do bom velhinho, num suntuoso shopping center da capital.

O dito-cujo chamava-se Adalberto. Fumava Jeronimo’s, comia quentinhas e se hospedava numa pensão mequetrefe da região central, para minimizar os custos da estadia. Nada de barba postiça ou de almofada amarrada na altura da cintura. Os pré-requisitos do contratante foram claros: homem branco, acima de 50 anos, boa escolaridade, abdome protuberante, barba natural e paciencioso com crianças.

Sempre tinha uma primeira vez. Nunca havia tomado cerveja com o Papai Noel. Pensava que esses caras simplesmente não existissem. Adalberto era um galego que morava no extremo norte do país. Fomo-nos apresentados por um amigo em comum durante uma roda de samba. Ele contou que a iniciativa de trabalhar como Papai Noel acontecera por acaso, a partir de um conturbado natal em família. Tinham contratado um Papai Noel a preços módicos, tipo negócio de ocasião, uma verdadeira pechincha desde que o pagamento fosse efetuado adiantadamente e blá-blá-blá. O farsante, é claro, não deu as caras. A parentalha estrilou. Vovó chorou de mágoa, molhando a anágua. A meninada pressentiu o fiasco e começou a ficar indócil. Afinal, Papai Noel vinha ou não vinha?

Veio. Criaram um improvisado gabinete de crise para lidar com o entrevero de última hora. Não dava para decepcionar os pirralhos. Só tinha um jeito: um dos adultos teria que se passar pelo Noel. Por óbvias questões fisionômicas, Adalberto acabou eleito por unanimidade pelos parentes. De início, gargalhou — Ho! Ho! Ho! Ho! — depois, relutou e, enfim, resignado, sacou que não tinha outra forma. Era um homem solteiro, sem filhos e acreditava não levar jeito com os pequenos. Praticamente, considerava-se um discípulo de Herodes. Ofereceram-lhe um barril de chope e Adalberto aceitou a empreitada com a galhardia de um bebum inveterado.   

A tramoia foi bem-sucedida. A meninada mordeu a isca com linha e tudo. Adalberto cumpriu a missão com categoria, disfarçando os trejeitos, arrastando os pés, fingindo-se de corcunda — ao velho estilo Papai Noel pé-na-cova —, mudando o timbre de voz, complementando o volume da barba rala com chumaços de algodão e cola. Com tenacidade, ele salvou o natal da família, encheu a pança de chope e ainda terminou tomando gosto pela coisa. Conversar de uma maneira tão pura e tão particular com os sobrinhos virou a chave da empatia dentro do seu peito.

Desde então, transformara-se no Papai Noel oficial da família, até ser pego na mentira por um moleque crescidinho que botou tudo a perder — “Gente, é o tio Dal…”. Inês, a vovó, só não chorou porque já estava morta desde o verão passado. Adalberto mantinha o bom humor. Percebeu que podia aproveitar o inusitado talento para as artes cênicas e fazer uns extras no comércio local, complementando o arrochado orçamento doméstico. Afinal, ganhava uma merreca como vendedor de colchões numa loja de armarinhos.

De repente, a zoeira. Armaram uma batida policial em pleno sábado, em pleno boteco. Os fardados chegaram fazendo estardalhaço, derrubando cadeiras e empunhando as armas para cima num show espetaculoso, patético e desnecessário. Estupefato, parei de dedilhar “Retalhos de cetim”. Tomaram o meu violão. Ordenaram que a gente pusesse as mãos sobre a cabeça. Um magricelo antipático com distintivo na mão perguntou quem ali se chamava Sigismundo, o cara que fazia o Papai Noel. Parecia notório que Adalberto fosse o único sujeito naquela birosca com potencial físico para encarnar o personagem, mas, claro, sua graça não era Sigismundo.

Antes que pudesse soletrar Na-bu-co-do-no-sor, Adalberto foi contido e algemado pelos milicos. Seus olhos azuis se encheram d’água. Os maxilares coraram. Tentou se explicar, mas, o mandachuva falou cala a boca vagabundo. Não se discutia com um policial armado. Um dos agentes enfiou a mão no bolso dianteiro da calça. Adalberto se contorceu em cócegas. O homem conferiu a documentação e constatou que o nome no RG não condizia com os dados que possuíam sobre o acusado. A autoridade policial concedeu que Adalberto abrisse o bico e se justificasse.

Ele explicou que certamente era um engano, que morava no Pará, que estava de apenas passagem pela cidade, que trabalhava no shopping como Papai Noel, revezando-se com outros dois sujeitos em turnos de 12 por 36. O delegado percebeu a presepada, arrastou uma cadeira, sentou, permitiu que todos se sentassem também, pediu um copo americano, serviu cerveja e continuou o interrogatório que consumiu cinco garrafas e uma porção de frango-a-passarinho.

No frigir do frango, ou melhor, no frigir dos ovos, todos concordaram que a batida policial fora um lamentável equívoco. Estavam no encalço do Papai Noel errado. Contente, enquanto mordia uma sobrecoxa desossada, Adalberto perguntou qual era a bronca com o seu colega de lida. O amargo delegado degolou um galeto, mordiscou o pescoço crocante com molho agridoce e disse que Papai Noel, na verdade, era um pedófilo há tempos monitorado pela inteligência policial. Esclarecida a patacoada, a polícia picou a mula, o bar aplaudiu a sua saída e voltou a entoar um dos maiores clássicos da música popular brasileira, da autoria de Benito de Paula. Ficamos aliviados em saber que Adalberto, o nosso Papai Noel predileto, não era nenhum maníaco fissurado em criancinhas.

Na noite seguinte, curtindo uma ressaca danada, tio Dal partiu da rodoviária em direção ao polo norte do território brasileiro. Horas mais tarde, completamente aturdidos, soubemos pela TV que um ônibus lotado de passageiros tinha capotado numa pirambeira a poucos quilômetros da cidade de Belém. Todos os ocupantes sobreviveram, inclusive, Papai Noel que, na verdade, nunca tinha existido.