Aplaudido de pé no Festival de Cannes, o filme da Netflix, que é considerado um diamante, mas você não assistiu Jae Hyuk Lee / Netflix

Aplaudido de pé no Festival de Cannes, o filme da Netflix, que é considerado um diamante, mas você não assistiu

Bong Joon-ho é um homem ousado. Poucos diretores sabem como dizer verdades incômodas e fomentar discussões cada vez mais urgentes como o sul-coreano, que, merecidamente, vai botando no currículo láureas a exemplo do Oscar   de Melhor Filme por “Parasita” (2019), o primeiro filme de língua estrangeira a vencer nessa categoria, e a Palma de Ouro de Cannes — fazia cerca de setenta anos que uma mesma produção não conquistava os dois prêmios máximos mais importantes do cinema.

Se “Parasita” abriu os olhos do mundo para o que tem feito a indústria cinematográfica da Coreia do Sul, “Okja” entra na equação como um catalisador das vontades do público e do pensamento refinado de Bong, que nunca se furtou a tocar em chagas expostas da humanidade desde muito antes da fama. Em “Okja”, o diretor arruma um jeito vesanamente original de dar cutucadas elegantes no capitalismo bestial de que também faz parte, sabendo muito bem até onde deve ir em seu panfletarismo. Seu divertido filme conta a história de uma amizade que resiste ao assédio de poderosos e a interesse escusos, aprofundando-se nos dois tópicos, que se comunicam sempre. 

Mija, a camponesa interpretada por An Seo-hyn, vive com o avô Heebong, de Byun Hee-bong, numa escarpa de montanha onde o sol parece se demorar mais. A personagem-título, uma simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil, está sempre com ela, mas a separação é iminente.

Num flashback ágil, o diretor e Jon Ronson, seu corroteirista, esclarecem que Lucy Mirando, a CEO de uma megacorporação da engenharia de alimentos de Tilda Swinton, produziu um lote de 26 indivíduos da nova espécie, e os distribuiu para diversas partes do mundo, mas alertou que os animais seriam recolhidos ao cabo de dez anos, para alimentar as classes mais populares com sua carne tenra e nutritiva. Aos poucos, como não quem não quer nada, Bong sustenta um atilado manifesto contra o consumismo, atacando-o pelo flanco mais sensível.

Como poderia virar bifes uma criatura que passa uma década a crescer com uma garotinha, as duas assistindo às evoluções e aos tormentos pequenos e grandes uma da outra, só porque homens não se controlam e seguem se reproduzindo, sem ter ideia de como farão para saciar suas necessidades mais básicas? Mija, claro, se recusa, e An protagoniza cenas penosas e comoventes, fugindo com a mascote criada pela computação gráfica da equipe coordenada por Jeff Brink pelos campos verdes do interior da Coreia do Sul. Quando Okja é afinal capturada, a trama vai para Paramus, Nova Jersey, onde já estão centenas de filhotes dos protótipos originais, usados em experiências nem sempre éticas e prontos para as gôndolas dos supermercados.

No terceiro ato, o ambicioso texto de Bong e Ronson torna-se uma espécie de “Babe — O Porquinho Atrapalhado na Cidade” (1998), a bonita fábula de George Miller, carregado nas tintas do sombrio. O núcleo liderado por Swinton, com destaque para Jay, do cada vez melhor Paul Dano, leva-nos a pensar sobre até que ponto o consumo, inclusive de carne, altera nossa percepção do que de fato importa na vida, usando para isso a figura de uma menina e seu bicho de estimação, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura. E há milhões de Okjas nas fazendas de todo o planeta agora, respirando apenas para saciar nosso vão prazer.


Filme: Okja
Direção: Bong Joon-ho
Ano: 2017
Gêneros: Fantasia/Ação/Aventura/Drama
Nota: 9/10