Viagem em família: do céu ao inferno em um segundo

Viagem em família: do céu ao inferno em um segundo

Família: palavra que nos leva ao berço esplêndido de segurança e amor, carinho e solidez. Cogita-se até mesmo derivar do latim “fami” — fome — grupo de pessoas que passa fome junto e não se separa. Lindo. Poético. Apoteótico.

Viagem: do latim “viaticum”, jornada. Um livro pode propiciar uma viagem, assim como um filme, uma conversa ou uma simples troca de olhares. Mas viagem pode ser um porta-malas cheio de sacola, farofa, frango, gelo, refrigerante e salgadinhos, com cinco assentos e doze pessoas, rumo à praia lotada de gritaria e gente quase sempre bem-intencionada.

Em sua doçura, os filhos já estreiam a epopeia: “tá chegando? Falta quanto tempo? Tô com fome, tô com sede, tô com calor, desliga o ar, aumenta o ar” e, antes de respirarem, os irmãos já se engalfinham no banco de trás. “Parem com isso agora ou meto a chinelada”, berra a mãe do banco da frente, mas os espertinhos conhecem bem as reentrâncias que a mão pesada não alcança. Briga de irmão é um fenômeno a ser estudado: o novelo de palavrões inimagináveis se desfia num espetar de língua, mas se acaba ali naquele microcosmo. Ai daquele que chamar o irmão do outro de “bobinho”! A irmandade é uma seita que não aceita convidados.

Mais dois quilômetros rumo à farofa e a tia, já de maiô colorido, chapéu mexicano e segurando a caixa de isopor, escolhe a adolescente mais rebelde para começar as indagações: “mas e os namoradinhos, hein?”, apenas para vislumbrar o globo ocular da sobrinha dando a volta por toda a caixa craniana. E. Os. Namoradinhos. Jamais pergunte isso a um adolescente. Jamais pergunte isso a ninguém. Obrigada. Por nada. A tia se cansa e se encosta na janela lateral, esperando a mágica que em meio segundo a faz começar a roncar e babar na roupa da sem-namoradinhos. Tem muito amor no coração e nem tanto bom senso na cabeça. Os adolescentes, entediados, voltam a se engalfinhar. “Shhhh! Não acorde sua tia”, mas em vão: engalfinhamentos e roncos permanecem.

Uma vez na o praia, a família inteira se aninha sob o mesmo guarda-sol. A mãe lambuza os meninos de protetor solar, deixando seus rostos brancos. A caixa de isopor é aberta, liberando o cheiro de frango em um raio de dez quilômetros. A filha adolescente finge não conhecer aquelas pessoas e vai dar um mergulho no mar, mas retorna em minutos para devorar a farofa em todo o esplendor de larica que só alguém aos quinze anos consegue explicar. A avó reclama de dores no quadril ,que pioram quando não estica as pernas e, assim, toma para si duas cadeiras inteiras. O refrigerante de dois litros quebra o galho no calor de quarenta graus, mas o que salva mesmo é esfregar uma pedrinha de gelo contra a pele.

Bronzeador melequento ensaboando as reentrâncias corporais femininas se misturam ao hábito de beliscar a comida do prato do familiar mais próximo. “Só estou provando, deixa de ser murrinha” (enquanto o garfo invade a farofa do primo), “me dá mais um pedacinho” (e lá se vai mais da metade do prato), “só quero ver se está bom” (cadê a comida que estava aqui?). Intimidade é uma pérola da vida cotidiana!

Viagens em família são também excelentes para reviver histórias embaraçosas do passado. Lembra quando você tinha quatro anos e comeu titica de nariz na frente dos amigos de seus pais? Ou quando chorou de susto com sua primeira menstruação? Ou ainda quando fez xixi na roupa, aos onze anos, após assistir a um filme de terror? Não se preocupe, essas histórias jamais serão esquecidas enquanto houver reuniões de família para carinhosamente relembrá-las e recontá-las a todos que estiverem por perto. Se a família for grande, então, em mais alto e bom som será contada a peripécia. Muita gente com muita intimidade costuma vir com decibéis extras capazes de tirar um monge budista do sério.

Como todos conhecem boa parte da vida de todos, o momento também é excelente para “alfinetadinhas” estratégicas. “Pai, me dá três reais para comprar um picolé?”, “claro, filho. Diferentemente da sua mãe, sou mão aberta” — diz o pai, enfatizando o advérbio e fazendo cara de paisagem. “Vamos fazer uma caminhada na praia?”, “ah, mas se for para andar igual lesma como foi da última vez, prefiro nem ir!”. Cada alfinetada rende uma discussão imperial, que passa com a mesma velocidade com a qual chegou, num verdadeiro “tapas e beijos” bem conhecido da deliciosa farofagem latina.

Famílias grandes são verdadeiras montanhas russas. Há quem diga que sua origem seja do latim “famulus”, algo como “escravo doméstico”. Grupo de pessoas que, ainda sendo escravas de si mesmas, de suas desventuras, brigas e desarranjos, é o seio por que se procura quando há fragilidade. Suas aventuras em grupo rendem risadas e causa saudade quando existe distância. Família come junto, passa fome junto, se nega, se estranha, mas — vai inverno, vem verão — é quem não mede esforços, amor e abraços, mesmo que melecados de bronzeador e frango com farofa. Pegue seu isopor e boa viagem!