A vida de Buda, segundo Jack Kerouac

A vida de Buda, segundo Jack Kerouac

Jack Kerouac é aquele escritor americano de ascendência franco-canadense que compõe a santíssima trindade da “Geração Beat”, ao lado de Allen Ginsberg e Willian Burroughs. As pessoas costumam conhecê-lo por “On the Road”, o calhamaço — percursor da contracultura — em que relata suas aventuras pelos Estados Unidos e pelo México, regadas a jazz, poesia e benzedrina. Confesso que, num primeiro contato com o seu “magnum opus”, fiquei desnorteado. Kerouac descreve a noite nova-iorquina, os concertos de jazz e as figuras humanas interessantes que conheceu pela estrada em períodos muito longos, num estilo que ele chamou de “prosa espontânea”. É como um motorista imprevisível que dá várias voltas na mesma rua, vira em outra (sem dar a seta), atravessa uma ponte, volta para a rua anterior, viaja 70 km ao norte para comprar cigarros e assim por diante.

A espontaneidade também se revela no fato de Kerouac ter datilografado o manuscrito original de “On the Road” em apenas 3 semanas, à base de sopa de ervilha, café e benzedrina; uma façanha que fez Truman Capote caçoar: “That isn’t writing; it’s typing” (“Isso não é escrever; é datilografar”).

Publicado pela “Viking Press” em 1957, após Kerouac acatar diversas exigências do consultor editorial Malcolm Cowley (como a supressão de várias viagens paralelas descritas no manuscrito original), “On the Road” tem o aspecto de uma jornada espiritual na qual o protagonista Saul Paradise (“alter ego” do autor) desvela progressivamente a realidade do sonho americano, ao seguir o exemplo do anti-herói Dean Moriarty (o poeta e ex-presidiário Neal Cassady, na realidade). Segundo Ann Charters, estudiosa da obra de Kerouac: “Dean é a realidade do sonho. À margem da sociedade, ele não tem ilusões sobre o fim da estrada”.

Jack Kerouac
Jack Kerouac: que descrevia a si mesmo como um católico místico, estranho e solitário

O teor espiritual é uma constante na obra de Kerouac, que descrevia a si mesmo como um “católico místico, estranho e solitário”. O próprio termo “Beat”, tem um significado religioso para o autor. Ele conta que a primeira vez que o ouviu foi na boca de um trapaceiro da Times Square chamado Hebert Hunckle e que se referia a uma “grande exaustão”; na sua concepção, porém, o termo adquire o sentido de um conhecimento direto de deus, e, portanto, de tudo o que é verdadeiro. Em “On the Road”, Dean Moriarty funcionaria como o portador desse conhecimento oculto, revelando-o ao ingênuo Saul Paradise. Peço licença para recorrer a Ann Charters novamente: “Moriarty é ‘Beat’— a estrada, a alma beatificada, possuidora da chave para abrir a porta das possibilidades misteriosas e da riqueza da própria experiencia”.

E o interesse pelo budismo começou justamente após essa convivência com “Dean Moriarty” — leia-se: Neal Cassady —, que era muito inspirado pela espiritualidade “New Age”, cuja influência na cultura americana ainda estava engatinhando. Segundo conta Allen Ginsberg, seu amigo e poeta, autor do famoso “Howl” (“Uivo”), tudo começou quando Kerouac foi à uma biblioteca pública em San José e leu “A Buddhist Bible”, uma compilação textos do cânon budista editados e traduzidos por Dwight Goddard. O escritor ficou fascinado, memorizando diversas passagens; a leitura foi o pontapé inicial para um interesse pela religião (longe de mim entrar aqui na interminável discussão acerca da natureza da prática budista, se filosófica ou religiosa) que durou até o fim de sua vida.

Ginsberg ainda relata que Kerouac o introduziu ao budismo por meio do canto, em sânscrito, dos três refúgios: “Buddham Saranam Gochami, Dhammam Saranam Gochami, Sangham Saranam Gochami” (“Eu tomo refúgio no Buda, Eu tomo refúgio no Dharma, Eu tomo refúgio na Sangha”). Kerouac era grande admirador da oratória e da capacidade vocal de Frank Sinatra e tentava emular o seu estilo ao tomar os três refúgios. Assim, temos que imaginá-lo na frente de Allen Ginsberg declamando, em pé, à maneira de Frank Sinatra, os três refúgios; provavelmente não há nada mais representativo da “Geração Beat” do que essa cena surreal.

Indo para o assunto do título, depois de anos estudando e praticando o budismo, Kerouac decide que chegou hora de dar a sua própria contribuição ao tema e escreve, em 1955, “Wake Up: A Life of the Buddha” (“Despertar: Uma Vida de Buda”). Praticamente todos os livros de Kerouac são, de uma forma ou de outra, autobiográficos; assim, é notável que essa constitui uma das raras vezes em que o autor se dispôs a contar uma história que não fosse a sua.

Embora seja baseado em fontes antiquíssimas como os “Suttas”, o “Buddhacharita”, de Ashvhaghosha e a “Vida de Milarepa”, de Tsangnyön Heruka, fica claro, desde o início do livro, que não estamos diante do trabalho de um acadêmico, mas sim de alguém que absorveu com paixão a mensagem de Buda e tomou como missão pessoal espalhá-la ao mundo. É por isso que Kerouac diz com todas as letras no início do livro: “Meu propósito é converter”.

O autor começa o livro lamentando como o Ocidente compreendeu mal o que foi Buda, tomando-o por “uma figura rococó grande e gorda sentada com a barriga de fora, rindo, conforme representado em milhões de bugigangas para turistas e estatuetas de lojas baratas”, esclarecendo que na verdade ele foi “um profeta sério e trágico, o Jesus Cristo da Índia e de quase toda a Ásia”.

Despertar: Uma Vida de Buda
Despertar: Uma Vida de Buda (‎L&PM Editores, 185 páginas)

Passa, então, a nos contar os episódios mais emblemáticos da vida do “Iluminado”, sempre se baseando nas fontes tradicionais. Começa por seus dias de luxo — ainda como príncipe Sidarta Gautama — no palácio de seu pai, o marajá Suddhodana, do clã Sakya. Nessa época, ele era casado com a princesa Yashodhara, sua prima, cuja mão só lhe foi concedida depois de sobrepujar outros príncipes da região. Percebendo que o filho ficava cada vez mais triste à medida que se aproximava dos trinta anos, o marajá tentou de várias maneiras agradá-lo — leia-se: colocou à sua disposição um harém repleto de mulheres encantadoras. Mas aquilo não surtiu efeito, e o príncipe foi aos poucos percebendo a natureza transitória da existência, bem como a realidade do sofrimento, da doença e da morte. E não apenas isso: percebeu que a vida palaciana em nada lhe ajudaria a combater essa realidade. Assim, aos 29 anos, Sidarta decidiu deixar tudo para trás e buscar “o caminho da fuga definitiva”.

Inicialmente, Sidarta voltou-se para os ensinamentos de mestres como Alara Kalama, que envolviam práticas de ascetismo extremo (auto-mortificação). Depois de anos dessas práticas que Kerouac descreve como “exercícios inúteis e medonhos”, aquele que se tornaria o Buda desmaia e quase se afoga nas águas do Nairanjana. Ao despertar, percebe que, assim como a luxúria extrema, aquilo não passava de uma outra forma de ignorância. Ele começa a buscar um outro caminho para atingir a libertação. Um caminho do meio.

O tempo passa e, sentado sob a “Árvore de Bodhi”, Sidarta intui os doze elos que descrevem o renascimento (e como pará-lo): ignorância, carma, consciência, individualidade, seis órgãos dos sentidos, sensação, percepção, desejo, apego, ações, nascimento e morte. Percebendo o caminho para a libertação, se transforma, enfim, no Buda. E para o benefício da humanidade, o “Desperto” estrutura o caminho do meio: formula as quatro nobres verdades e o caminho óctuplo.

A partir daí, “Aquele que despertou” se dedica a divulgar a sua mensagem de libertação para todo o mundo, proferindo seus famosos discursos (“Suttas”) até o momento de sua morte aos 80 anos em Kushinagar. Kerouac assim descreve o momento imediatamente seguinte: “Como o grande elefante despojado de suas presas, ou como o touro líder espoliado de seus chifres, ou o céu sem o Sol e a Lua, ou como o lírio abatido pelo granizo, assim o mundo ficou consternado quando Buda morreu”.

No decorrer da narrativa, percebe-se que Kerouac se expressa de três formas distintas. Em alguns poucos momentos, permite a si mesmo uma expressão mais lírica, apaixonada. É o que se vê na passagem em que Buda, sentado sob a Árvore de Bodhi, resiste à tentação de se levantar: “Seus ossos poderiam apodrecer e seus tendões atrofiar-se, e corvos bicarem seu cérebro abandonado, mas esse homem semelhante a um deus não se levantaria daquele lugar sobre o leito de grama debaixo da figueira até ter resolvido o enigma do mundo”.

Em outros momentos, o autor é mais contido, prezando pelo caráter pedagógico da obra: “Veio a Buda naquelas horas a compreensão de que todas as coisas vêm de uma causa e vão para a dissolução e, portanto, todas as coisas são impermanentes, todas as coisas são infelizes e, por conseguinte e mais misterioso, todas as coisas são irreais”. Não surpreende que esse tipo de passagem componha grande parte do livro, dada a intenção declarada de Kerouac de que ele seja “um manual para o entendimento ocidental da antiga lei”.

No mais, o autor quase que repete “ipsis litteris” o texto dos “Suttas”. É o que acontece, por exemplo, nesta passagem em que Buda profere o “Adittapariyaya Sutta” (“O Sermão do Fogo”): “O olho, ó sacerdotes, está em fogo; as formas estão em fogo; a consciência do olho está em fogo; as impressões recebidas pelo olho estão em fogo; e qualquer sensação que seja, agradável ou desagradável, ou indiferente, que se origina na dependência de impressões recebidas pelo fogo, também está em fogo”.

Não tenho dúvidas de que “Despertar: Uma Vida de Buda” é, simultaneamente, um ótimo livro de divulgação da mensagem de Buda, na medida em que compila de forma didática e apaixonada seus principais ensinamentos sem pretensão de rigor acadêmico, e uma obra essencial para que se compreenda a complexa espiritualidade de Kerouac, esse homem nascido em lar católico que, não raro, faz referências em seus livros a um deus onipresente (uma ideia estranha ao budismo) e que se apaixonou perdidamente pelo “Dharma”. Nesse sentido, é significativo que ele tenha escolhido citar esta prece sincrética, de Dwight Goddard, no início do livro: “Adoração a Jesus Cristo, O messias do mundo cristão; Adoração a Gautama Sakyamuni, O corpo de aparência de Buda.

Infelizmente, o escritor não viveu para ver o seu livro fazendo o trabalho de conversão que aspirava. Apesar de tê-lo escrito em 1955, só veio a público em 2008, trinta e nove anos após a sua morte. De todo modo, Jean-Louis Lebris de Kerouac foi um dos corações mais expressivos a se sentar diante de uma máquina de escrever, dedicando-se com uma intensidade assustadora a tudo o que se propôs. “Despertar: Uma Vida de Buda” é uma prova disso e merece ser lido por todos. Que ele tenha sucesso no seu propósito de converter os corações do ocidente!