Bula de Livro: Precoce, de Ariana Harwicz

Bula de Livro: Precoce, de Ariana Harwicz

Li “Precoce”, de Ariana Harwicz, e é, estranhamente, bom! A leitura é tensa. De pronto, não parece que o livro trata da relação mãe e filho. Ainda estamos na primeira página e a morte já aconteceu duas vezes. Um pouco mais adiante, mais violência, mais brutalidade crua: “E depois, fazendo desenhos sobre o rio. O laser entre as pernas, escrevemos nossos nomes em maiúscula e os contornamos com um coração, igual ao coração que ele desenha com esperma na minha cara”. É isso mesmo, mãe e filho! Não se escandalize. Essa relação é bastante conturbada na realidade e a literatura já tratou exaustivamente o tema. Harwicz faz do seu jeito e escreve um pequeno romance lírico, louco e inspirado.

O lirismo insano presente no livro rompe inusitado e buscamos o sentido. “Depois de atravessarmos campos com estuários, e o som do batimento cardíaco de um cisne é tão intenso que nos faz chorar.” Há beleza! É um passeio por tipos e situações estranhas. Mãe e filho são cúmplices em pequenas aventuras semiurbanas, parceiros em pecados perdoáveis. Até que toda essa loucura e violência desembocam em um evento: “e lhe dou um tiro”. Há um torpor constante! O desespero é um vetor cuja intensidade aumenta categoricamente. No livro, existe um mormaço perene, uma nuvem de angústia dotada de força e capacidade de antecipar o desastre. É iminente. Já estamos em um terço do texto e o mundo desaba paulatinamente em torno da mãe, que narra a história.

Podemos fazer a seguinte analogia: o livro é a mãe postada no centro de um círculo gigantesco onde uma multidão ao redor lhe atira todo tipo de coisa. E ela se enche de culpa e loucura: duas substâncias potentes que não podem ser misturadas. Mas Harwicz as misturam. A mãe é um animal que amamenta, protege e age por instinto. Em resumo, é um animal! “Nasci do teu rabo e desde então eu fedo.” O filho calcula as palavras delicadamente.

“Precoce” é a história de uma obsessão. Uma obsessão natural, darwinista. E não são, afinal, as mães donas de seus rebentos? Nada mais justo! Pelo menos até que tenham condições de viver por conta própria, o que no caso dos filhos homens é, praticamente, nunca. O livro é, ainda, uma placa de cuidado bem desenhada, posicionada em uma rua larga, num lugar bem visível. Numa cena emblemática, há em uma delegacia uma série de avisos sobre perigos na gravidez e maus tratos. O alerta sobre algo que é tão corrosivo quanto a obsessão da mãe implica em dizer que o limiar entre o excesso de carinho e o sufocamento é muito tênue.

A mãe entende que o divertimento inconsequente da infância é um afago e uma maneira de cativar o filho. Mas esse é seu devaneio. Existe uma maturidade necessária que diz respeito ao momento da separação, o rompimento da dependência. Olhar de longe e cuidar é um degrau da maturidade, Harwicz parece querer dizer algo sobre isso.

O livro possui uma dinâmica peculiar e uma voz narrativa bastante original, incomum. As situações são conectadas, superpostas, de forma abrupta. Mal saímos de uma e já estamos imersos em outra, diferente, sem aviso. O livro tem o ritmo do crescimento dos filhos: saem da infância para a adolescência e da adolescência para a idade adulta, sem avisar, sem pedir permissão, sem dar a chance da mãe se acostumar com as mudanças, que não cessam.


Livro: Precoce
Autor: Ariana Harwicz
Tradução: Francesca Angiolillo
Páginas: 72 páginas
Editora: Instante
Nota: 8/10