O Brasil da série Cangaço Novo Divulgação / Amazon Studios

O Brasil da série Cangaço Novo

As cidades interioranas estão na pauta do momento, servindo de espaço ficcional para filmes, romances e séries de streaming. Parece haver, na verdade, um esgotamento da metrópole moderna como assunto e, ao mesmo tempo, a redescoberta do universo rural. Os olhos se voltam para um cenário que carrega simultaneamente os traços urbanos e os rurais: motocicletas, picapes SUV, telefones celulares, pequenas fazendas, caatinga, em meio às relações sociais bem brasileiras e tenebrosas. 

A série “Cangaço Novo”, do Prime Video, é a mais recente produção que explora o admirável mundo novo do interior brasileiro. A história se passa no Ceará, tendo o fenômeno dos assaltos espetaculosos a banco no centro da narrativa. Nas últimas décadas, a descentralização econômica gerou um agronegócio dinâmico, globalizado e que movimenta muito dinheiro. Não demorou muito para que os criminosos descobrissem onde fica o pote de ouro.

Em oito episódios, a primeira temporada de “Cangaço Novo” conta a história do retorno do personagem Ubaldo (Allan Souza Lima) à cidadezinha fictícia de Cratará, no sertão cearense. Um clássico enredo de volta de um filho pródigo que, após uma tragédia familiar, passou a viver em São Paulo. O passado de Ubaldo é formado por traumas sucessivos, como o assassinato do pai (um vaqueiro temido que seria cangaceiro ou jagunço da região).

Ex-militar e ex-bancário, Ubaldo vai atrás de uma suposta herança de família que, ao final, se revela inexistente. Apesar do desapontamento, o retorno ao “berço” leva o protagonista a conhecer suas irmãs-sobreviventes Dinorah (Alice Carvalho) e Dilvânia (Thainá Duarte), além de sua tia Zeza (Marcela Cartaxo). Esse matriarcado é o contraponto àquele ambiente masculino dos “cangaceiros” ou jagunços modernizados.

Zeza administra uma irmandade, uma forma de igreja muito particular na zona rural, que reúne traços do catolicismo e da cultura popular. É de lá que emerge uma força selvagem, rompedora com o marasmo local. É possível fazer o paralelo em relação à “Bacurau” do filme de Kleber Mendonça Filho. Os latifundiários (antagonistas clássicos) aparecem nas figuras do prefeito de Cratará e de seu pai, um senador mestre nas artes de gerir o atraso sistêmico.

A ruptura com o estado de coisas vem dos novos cangaceiros: um grupo de assaltantes de bancos nas pequenas cidades. Há uma controvérsia se é correto chamar essa turma de novo cangaço, mas é assim que ela ficou conhecida nos últimos 20 anos. O achado da série é mostrar esse tipo social que vem de baixo. Trata-se de uma ralé que se revoltou nos últimos anos, em vários sentidos, e achou um lugar ao sol no sofisticado mercado do crime e até da política (haja vista os milicianos, como na série “Os outros”).

Para resolver os apertos financeiros (sobretudo a ajuda ao pai adotivo doente), Ubaldo mergulha no sistema cangaceiro, ao lado da irmã Dinorah. Ela é quase uma Diadorim, personagem de “Grande Sertão: Veredas” que veste as roupas dos homens e assume o poder de mando no grupo de assaltantes. Este bem poderia ser o velho e bom sistema jagunço de Guimarães Rosa. Mas não existe glamour nesse sertão, muito menos pactos transcendentais com o diabo. Há uma fome de sobrevivência, busca por dinheiro.

A ideologia do agronegócio vende hoje o sonho de que o futuro brasileiro está no interior do país, em imensas plantações de soja voltadas para mercado global. De fato, o campo é o que restou do dinamismo na modernização brasileira do século 20 — muito agonizante na atualidade. É uma promessa de felicidade e superação contada, por exemplo, na recente série “As Aventuras de José & Durval” (2023), que traz a biografia da dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó.

A contranarrativa a esse mundo róseo (quase utópico do agro) surge na série “Cangaço Novo”; nos extraordinários filmes “Deserto Particular” (2021) e “Arábia” (2017); e num romance recente como “Vento de Queimada” (2023), de André de Leones. Trata-se de um lado B da história que, no passado, os modernistas chamaram de “tomada de consciência do atraso”, a partir do romance regionalista dos anos 1930 e do Cinema Novo da década de 1960.