Do glamour à opressão: documentário imperdível na Netflix conta história de abrigo gay que desafiou o nazismo Divulgação / Netflix

Do glamour à opressão: documentário imperdível na Netflix conta história de abrigo gay que desafiou o nazismo

Há algo de muito errado com uma sociedade quando o que mais se pode desejar é um refúgio onde a fantasia, a igualdade, o direito a uma vida plena de direitos tenham chance de defesa. Por anos, esse lugar foi a lendária boate Eldorado, símbolo da feérica noite berlinense no final da década de 1920, justamente o que Benjamin Cantu e Matt Lambert querem demonstrar com “Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas”, título em que já se nota uma contradição fundamental. Uma casa noturna deveria passar ao largo das apreensões de qualquer sistema de governo, à esquerda ou à direita, de um país rico ou pobre, mas ainda antes da ascensão de Adolf Hitler (1889-1945) ao cargo de primeiro-ministro da República de Weimar, em 30 de janeiro de 1933, nomeado pelo presidente Paul von Hindenburg (1847-1934), frequentadores da boate começaram a ser ostensivamente caçados por homens da SS, a polícia política alemã, degringolando um processo cujas consequências a humanidade lamentaria para sempre. Não é exagero dizer que aquele foi o marco zero do Holocausto, o extermínio em massa de judeus enquanto Hitler teve legitimidade de gente simples para levar sua ideologia abjeta às instâncias mais dramáticas, e, o mais tétrico, é saber que findo seu reinado diabólico, que queria milenar, essa chaga permaneceu aberta por quase meio século.

Quando a noite cai, erguem-se os sussurros. Cantu e o corroteirista Felix Kriegsheim pontuam a abertura com cenas em que ninguém duvida: a Berlim dos anos 1920 é mesmo a cidade mais badalada do mundo. Através de suas brumas rescendendo a tabaco, rapé e perfumes adocicados, entre um e outro espocar de garrafas de champanhe, nem todas as inseguranças dirimiam-se, mas uma certeza era absoluta: no Eldorado, podia-se qualquer coisa. De todos os inferninhos dos anos dourados da década de 1920, aquele misto de bar, restaurante, teatro e, principalmente, centro de socialização era o mais querido, o mais procurado, o que mais despertava a curiosidade dos locais e dos turistas e o medo paranoico dos agentes da lei. Entremeando depoimentos de estudiosos da causa gay na Alemanha, a exemplo do historiador e curador de arte Klaus Mueller, com reconstituições dramatúrgicas ricamente adornadas pela fotografia de Christian Huck, Felix Leiberg, Michael Marius Pessah e Cezary Zacharewicz, e os cenários de Karin Betzler, os relatos sobre liberdade e autodeterminação chegam a figuras como Gottfried von Cramm (1909-1976), um aristocrata tornado célebre tanto pela destreza no tênis como pelo triângulo amoroso que protagonizava, completado por sua mulher, Elisabeth von Dobeneck (1912-1975), a Lisa, e o ator Manasse Herbst (1913-1997), namorado dela. Cantu e Lambert deixam evidente, todavia, um laivo de excessiva prudência ao dedicar boa parte da conclusão à história do austríaco Walter Arlen, maestro e crítico de música do Los Angeles Times, forçado a emigrar para os Estados Unidos, onde conheceu o marido, Howard Myers, em 1959, prova de gays no mundo inteiro e de todas as épocas nunca exorcizam de todo o passado. A criminalização da homossexualidade, sobretudo de homens, continuou na Alemanha Ocidental socialista, amparada pelo famigerado parágrafo 175 do Código Penal adotado pelos nazistas. O parágrafo 175 só foi revogado definitivamente em 1994.


Filme: Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas
Direção: Benjamin Cantu e Matt Lambert
Ano: 2023
Gênero: Documentário/Drama
Nota: 8/10