Diabruras humanas desde o grande sertão veredas até o meridiano de sangue

Diabruras humanas desde o grande sertão veredas até o meridiano de sangue

Quando soube da morte do escritor estadunidense Cormac McCarthy não fiquei de todo surpreso. Afinal, ele contava 89 anos de idade e, para sorte nossa, os animais, quando não impiedosamente trucidados por outros bichos, sejam eles racionais ou não, costumam morrer porque envelhecem em demasia. A melhor idade foi inventada, mas, ainda não foi vivida. Nada, nem ninguém, restará para semente, senão os livros, os bons livros escritos por escritores talentosos.

A preguiça também é imortal. Li apenas duas obras de Cormac McCarthy: “A Estrada” e “Meridiano de Sangue”. Comecei por “Meridiano de Sangue”, presenteado por um amigo e, até hoje, sofro as consequências de uma leitura palpitante que me deixou mais perplexo do que um soldado americano tomando flechada no peito. Sem dúvida, juntamente com a Bíblia, “Meridiano de Sangue” é o livro mais sangrento e mais violento com o qual já me deparei. A leitura de “A Estrada” veio logo em seguida, na base da empolgação. Trata-se de um bom livro que, inclusive, virou roteiro de filme. Mas, é bem menor do que o primeiro.

E por falar em sangue, enquanto eu sorvia talagadas do bom e do velho “Sangue de Boi”, safra da semana passada, no prenúncio de uma cefaleia holocraniana nauseabunda, por conta da mistura bombástica do álcool, do tanino, do açúcar e do resveratrol, cismei que “Meridiano de Sangue” e “Grande Sertão: Veredas” — o livro mais famoso do brilhante escritor brasileiro, o ex-médico Guimarães Rosa — pudessem conter algumas similaridades. Então, arranquei o rótulo do bojudo garrafão de vinho e passei a fazer anotações no verso, usando apenas cotonete, sangue de boá e um bocado de ócio.

Ambos os livros figuram em qualquer lista decente dos clássicos da literatura mundial em todos os tempos. Se é que alguém perguntou, se é que alguém se importa minimamente com isso, na minha lista dos Top Five da Literatura Mundial aparecem “Grande Sertão: Veredas” em primeiro lugar e “Meridiano de Sangue” logo em seguida. Por que coloquei “Grande Sertão: Veredas” à frente de “Meridiano de Sangue”? Porque a lista é minha, porque o texto é meu, porque sou bairrista e porque, ao contrário do escritor Cormac McCarthy, Guimarães Rosa foi mais além, ao contar histórias e filosofar de uma forma extremamente original, valendo-se, como ninguém, do neologismo, por exemplo, ao inventar palavras que não consigo imaginar como puderam ser traduzidas para outros idiomas.

As histórias sucedem mais ou menos na mesma época, ou seja, a partir da segunda metade do século 19. “Meridiano de Sangue” se passa no inóspito oeste nos Estados Unidos da América, numa zona cruenta onde digladiam os conquistadores americanos brancos, os indígenas e os mexicanos. O cenário do “Grande Sertão: Veredas” é aquele território árido dos sertões mineiro, goiano e baiano, dominado pela sede, pela fome, pelo medo, pela solidão e pela selvageria que, se não garante a existência, pelo menos, adia a morte, num roteiro mais do que imperfeito para propiciar que um cangaceiro se apaixonasse por outro, criando um silente dilema afetivo, o qual somente se desfaz no final da trama, quando ocorre a trágica morte de Diadorim, cuja real identidade pertencia a uma mulher, por nascença, o alvo do amor enrustido sentido por Riobaldo. Nesse ponto, perpassa uma clara discrepância entre as obras: não há espaço para o amor, por mínimo que seja, em “Meridiano de Sangue”.

O diabo. A figura do diabo aparece fortemente nas duas tramas, porém, de forma mais explícita e didática no livro de Rosa, onde o capeta é reiterado para deixar claro aos leitores sobre quem é que manda nas áridas plagas onde pelejam os homens que são mais homens e os fracos que não têm mais vez. Cormac McCarthy descreve o demônio oficiando na prática, abusando da crueldade e da carnificina, colocando a mão na massa num tête-à-tête deveras sanguinolento, protagonizado por homens brutalizados que vão se amontoando na forma de cadáveres ao longo de uma narrativa rascante. Para a decepção dos incautos, no final das contas, resplandece o talento inato do ser humano para cometer maldades, desde o estupro de meninos até o escalpelamento de pessoas. Em “Meridiano de Sangue”, como o próprio nome sugere, a selvageria prospera sem parcimônia e sem nenhum resquício de humanismo, como sói ocorre na vida real, deixando os leitores mais sensíveis com o estômago embrulhado e uma vontade danada de largar tudo para ler o WhatsApp.

A solidão parece ser o sentimento menos danoso a vigorar no “didentro” daqueles homens sem coração, excetuando-se, em parte, a dupla de cangaceiros enamorados idealizados por Rosa num formidável livro que entrega relevantes dificuldades de compreensão durante a leitura, porém, a transformação, no final das contas. “Grande Sertão: Veredas” é um livro transformador, um marco divisório para os aficionados pela literatura. Incrustados como parasitas dentro de um ambiente nocivo onde a vida parece inviável, a natureza extrai o que há de pior na mente daqueles personagens, assim como, por analogia, sucede nos dias atuais, nas redes sociais da internet, contaminadas por discursos de ódio e pela apologia à violência, onde se apregoa o armamento generalizado da sociedade, como uma forma legítima — e, até mesmo, cristã, de acordo com muitos — de se proteger dos homúnculos que ela própria cria.

Termino esse singelo exercício de analogia, regado a vinho de preço popular, contudo, não menos inebriante, afirmando que — sem medo de acertar, sem medo de vomitar quando me deitar na cama e constatar que o mundo gira ao meu redor — os livros “Mediano de Sangue” e “Grande Sertão: Veredas” são, obviamente, obras literárias grandiosas e detentoras de certas similitudes. Os homens bons, os homens malvados, todos sucumbirão. A arte não. A boa literatura não. Os livros de qualidade irrefutável continuarão vivos, resistentes como o cascalho dos inescrutáveis e áridos caminhos por onde pelejam os heróis, os vilões e as criaturas ingênuas concebidas pela genialidade de escritores imortalizados pelos próprios talentos, como Cormac McCarthy e João Guimarães Rosa.